Hoje farei algumas observações com os temas do livro Populismo: uma breve introdução, do cientista político Simon Tormey, especificamente o último capítulo.
Evocar o povo não é ser populista. O populismo, de maneira geral, se refere a uma relação de antagonismo entre povo e elite. Mas, numa Democracia, o povo é o sujeito principal da política. E, logo, qualquer candidato ou partido que evoque ou fale em nome do povo não é necessariamente populista. Faz parte do jogo. Uma constituição democrática não deve esquecer que é a expressão da vontade popular.
Os políticos discursam e acenam ao povo cotidianamente. Buscam atingir ou ganhar o maior número de potenciais eleitores, pois isso faz parte de seu capital político em uma democracia, principalmente para cargos executivos. São políticos populares com discurso de união. Essa expressão de generalidade não é incomum. E não há problemas nisso. Não nos enganemos: é uma postura republicana. Afinal o representante representa a vontade popular, e não de particulares ou nichos. Não é uma questão de esquerda ou direita. Não é um gesto de inflexão ideológica. Ambos aqui apelam ao povo, à nação. Não há aí conotação de exclusão, mas inclusão de todos num determinado território.
A diferença com os políticos populistas, é que estes criam, sim, um conflito entre o povo e as elites, nós contra eles. A retórica incide numa distância entre os interesses do povo versus os interesses de uma oligarquia carcomida. Por isso eles se consideram como outsiders. Dizem não participar da banda podre, e lutam contra o establishment ou o sistema, que estaria corrompido por interesses mesquinhos. O líder diz “siga-me, eu posso salva-los deles”.
O populismo não é uma variedade de política de extrema direita. Existe um traço comum com líderes populistas de direita (Le Pen, Trump, Erdogan, Bolsonaro, Órban) e partidos e lideranças do Podemos, do Syriza, políticos como Bernie Sanders, Iglesias, Tsipras, Jean-Luc Mélanchon e Jeremy Corbyn, e caudilhos da América Latina. A emergência de novos populistas de esquerda, levantam também o antagonismo com aqueles que estão associadas às elites, àqueles que corroboram com programas de austeridade, devido às crises financeiras e recessão global. Ou simplesmente àqueles que estão em desacordo com o interesse popular.
O populismo não é uma ideologia. O populismo não é um sistema de crenças e valores unificados, ou uma visão de mundo coerente com um projeto claro e acabado. Não! Não há uma gramática intelectual e consistente. O que os autores apontam em comum é a referência a incompatibilidade entre povo e elite. Mas populistas divergem sobre temas, pautas ou adversários.
“Os socialistas e os que estão na esquerda rejeitam a ideologia dominante de décadas recentes, a globalização neoliberal e seu foco no mercado e nas privatizações. Os que estão na direita se opõe às fronteiras abertas e ao livre movimento de pessoas”. (p.188)
Quem chantageia a democracia não são os populistas, mas os autoritários. Populistas ou não. Nem todo populista debanda para discursos de autoritarismo. Estes buscam, sim, reduzir todas as preferências à uniformidade e almejam a destruição das instituições democráticas-liberais. Existe, contudo, populistas que atacam não a existência do sistema, mas os que estão operando e a forma como estão. Mostram também que o povo não está sendo realmente representado; e estão alijados da participação. Alegam que governos estão mais para uma plutocracia do que uma democracia.
O populismo não é antidemocrático. No entanto pode vir a sê-lo. Discursos autoritários populistas atacam a existência das instituições liberais e dos processos democráticos. Discursos populistas podem simplesmente atacar homens e mulheres da elite, como corruptos ou incompetentes, por exemplo, sem apelar para a destituição da engenharia social. Assinalam para o problema da desconexão entre sistema e mundo da vida, pra usar um termo habermasiano. Ou seja, pode existir um sentimento de renovação da democracia ou de maior inclusão social. “Em vez de ameaçar a democracia, o populismo pode ser um meio de revitalizá-la” (p.195).
O populismo não ameaça o pluralismo. O emprego da palavra povo não pode nos assustar. Povo pode ser usado no sentido inclusivo, como está escrito nas próprias constitucionais democráticas. Não há problema nisso. Em tese, ninguém fica de fora, mesmo numa sociedade em que liberdade e diversidade são quase sinônimas. E isso pode ser entendido no espírito do nativismo ou nacionalismo, que não são, em essência, de caráter populista. “O populismo se torna de caráter nativista ou nacionalista quando esse antagonismo se conjuga com uma ideia sobre etnia, religião ou nacionalidade do povo em questão” (p.198).
O populismo pode ser usado como instrumento de revigoramento do pluralismo, como no Occupy Wall Street (Somos os 99%) da #15M (Espanha em 2011) ou da Nuit debout (França em 2016). São manifestações que atacam o 1% dos ricos, que controlam os rumos do país e excluem as vozes populares. Em outras palavras, elevar a participação significa “abertura da esfera pública a vozes e pontos de vista minoritários, e que deseja ver uma contestação política significativa, não um sistema em que a riqueza e o privilégio determinem os resultados políticos fundamentais” (p.199). Assim, o chamamento ao povo não é, necessariamente, exclusivista ou de convite ao anti-pluralismo. Eles podem lutar contra o exclusivismo histórico da participação popular.
O populismo não é a causa da crise, mas o sintoma dela. Alguns indícios já eram identificados desde a década de 60: apatia ou desinteresse pela política; fragilidade do sistema partidário; falta de identificação ideológica/partidária; falta de confiança nos políticos; a transformação do cidadão em consumidor e o desinteresse pela esfera pública. Bem antes do boom de populismos no século XXI e da ameaça às democracias liberais.
O populismo não é a causa da crise atual, mas o efeito dela. Surge quando a “política normal”, a política familiar caracterizada por um movimento pendular entre centro-esquerda e centro-direita, entra em pane, e os cidadãos começam a procurar fora da ordem tradicional soluções para as questões que lhes dizem respeito. Surge quando os cidadãos começam a sentir que as diferenças entre forças políticas tradicionais, que talvez já tivesse parecido tão nítidas, são menos significativas do que aquilo que as une (p.201).
O aparecimento do populismo indica algo que não pode ser desprezado do espírito do tempo: as pessoas começaram a perder a fé nos políticos e na sua legitimidade na representação da sociedade. Daí a crise de representação política. Começa a surgir uma confiança em novas lideranças, outsiders fora da classe política tradicional, ou que usam esse discurso, prometendo uma sociedade melhor. Praticamente é um apelo à Providência. Ou como diria Albert Camus: é proclamada impaciência do homem revoltado.
Repito: nem todo populismo, de partidos, políticos ou movimentos organizados são uma ameaça à Democracia. Pelo contrário, alguns ajudam a colocar o dedo na ferida para aprofundá-la. Não estão de acordo com o fim das instituições e muito menos com projetos de poder autoritários e seus sentimentos profundos de extremismo.
A tensão atual passa, como já foi dito, pela desconfiança também nas elites parasitárias, que dia após dia são expostas nas novas e velhas mídias, com comportamentos que vão da imoralidade à ilegalidade. É escândalo atrás de escândalo. Decepção atrás de decepção. Políticos, juristas estão sendo vigiados cada vez mais, e o cidadão comum tem tido mais acesso a essas informações, seja na tv ou no mundo digital e nos vários grupos de investigação por ai afora. Despencou há muito tempo a distância entre público e privado, entre segredo e política. Hoje tudo vaza muito rápido. A integridade e a reputação moral é o que o povo deseja desesperadamente. É feliz o termo democracia monitorada, criado pelo cientista político John Keane.
Populistas também serão cobrados por honestidade e respeito à coisa pública e reputação pessoal. Pautas que eles têm utilizado para chegarem ao poder. Populistas podem também ajudar a viabilizar a inclusão de cidadãos na condução do país. Há um sentimento de desprezo e exclusão do ser cidadão. Cada vez mais as pessoas são guiadas por decisões de organismos supranacionais e por empresas privadas, sem dúvida pela aceleração das relações globais, que afeta diretamente os interesses do país, do macro ou micro, e diminui o poder dos parlamentos (representantes legítimos do povo) na condução de políticas que melhorem o país. Atende-se mais aos interesses do capital do que do cidadão. A falta de segurança no emprego, nas vias públicas e na seguridade social alertam as pessoas a procurarem algo que dê solidez à suas vidas. Uma mensagem redentora de esperança.
À guisa de conclusão, o autor, implicitamente, e essa é minha impressão do livro, faz uma crítica dura à democracia liberal. Também acredita que não devemos colocar a participação popular como utopia. Ou seja, ela não pode ser um regime de oligarcas disputando votos, numa simples formalidade, como apontam os teóricos elitistas. Ela deve ser, sim, o regime do povo, e seus interesses devem ser atendidos. A falta de conexão entre representantes e representados ao longo das décadas, deflagou também na crise atual. E esse vazio criado pode fazer repensar uma radicalização democrática.
“O que é necessário é um chamado para o retorno ao conceito de democracia como uma terra comum, como um sistema político cuja única propriedade é pertencer a cada um e a todos, ao demos, ao povo” (p.209).
Referência. TORMEY, Simon. Populismo: uma breve introdução. São Paulo: Cultrix, 2019.
Imagem: https://www.amazon.com.br/Populismo-Breve-Introdu%C3%A7%C3%A3o-Simon-Tormey-ebook/dp/B082BHXRZN