Na história vez por outra desponta uma figura que, imbuída de poder, revela-se um tirano ao agir violentamente na condução do comando da nação. No rastro do seu governo o número de mortos e feridos é imenso e a falta de liberdade do povo é o preço que se paga ao se ceder à tirania. Mas por que muitos se deixam dominar por um? E como derrubar a tirania? Para responder a essas e outras questões o filósofo Étienne de La Boétie escreveu no século XVI uma obra que se tornou um marco na história da filosofia política.
A obra em questão é o “Discurso da Servidão Voluntária”, que já traz em seu título um elemento curioso: por que alguém se alienaria voluntariamente? A resposta para esta indagação é apresentada em vários aspectos durante o desenvolvimento da obra. Entretanto, para a questão sobre como derrubar um tirano, La Boétie responde logo no início do texto ao afirmar que para que haja a queda de um tirano basta não dar-lhe poder, assim, sem a necessidade de violência é possível, segundo ele, retirar o tirano do controle da nação. Esse é o motivo pelo qual La Boétie foi considerado um filósofo humanista, visto que para ele a força e a fraqueza do tirano estariam nas mãos daqueles que o elevaram ao poder e sua queda poderia ser realizada sem uso da violência, apenas pela retirada desse apoio. Dito isto, a resposta para o porquê da servidão voluntária começa a ser descortinada.
Em princípio, afirma ele, a servidão é dada pelo uso da força, pela imposição, mas depois, na geração seguinte, a servidão se dá de forma voluntária porque foi naturalizada, tornou-se hábito: “Os homens nascidos sob o jugo, depois alimentados e educados na servidão, sem olhar mais à frente, contentam-se em viver como nasceram e não pensam que têm outros bens e outros direitos a não ser os que encontraram”.[i] Para isso é importante que a ignorância, o desconhecimento por parte daqueles que conservam devoção à liberdade, sejam mantidos.
Não é do interesse do tirano que a população que aspira a liberdade adquira saberes, pelo contrário, o “tirano os priva de toda liberdade, não só de falar e de agir, mas até de pensar, e eles permanecem isolados e solitários em seus sonhos”.[ii] O tirano precisa manter a ignorância do povo para se sustentar no poder, ainda que em algum momento esse poder venha a ser questionado. Neste sentido o entretenimento – teatro, jogos, farsas, espetáculos etc. – exerceu ao longo da história uma função singular: “Assim os povos, embrutecidos, achando belos esses passatempos, entretidos por um prazer vão que passava rapidamente diante de seus olhos, acostumavam-se a servir tão ingenuamente [...].”[iii] Da mesma forma fazem uso de belos discursos sobre o bem público e o interesse geral antes de cometer graves crimes.[iv]
Contudo, para que no íntimo do tirano o seu poder esteja realmente assegurado, é imprescindível que tenha também “como súditos senão homens sem valor.”[v] La Boétie alerta que esses homens são possuídos por uma forte ambição e uma avidez notória e se organizam para realizar uma pilhagem e se tornar pequenos tiranos sob o comando do grande tirano.
Mas se enganam, na perspectiva do filósofo, aqueles se aproximam de um tirano para agradá-lo e obter benesses. Um tirano age de acordo com os seus próprios interesses e não tem amigos, nunca ama e nem é amado. As pessoas que do tirano se aproximam não fazem mais do que perder a sua liberdade e abraçar a servidão. Segundo o filósofo francês: “Quando os maus se reúnem há uma conspiração, não uma sociedade. Não se amam, mas se temem. Não são amigos, mas cúmplices.”[vi]
Assim, o que leva muitos a se deixarem dominar por um, especificamente por um tirano, consiste em três razões: a força, o hábito ou o interesse. Estes dois últimos se dariam voluntariamente. Mas seria suficiente retirar o apoio dado à tirania para vê-la desmoronar e com isso retomar a liberdade.
A apologia que La Boétie faz da liberdade é uma marca do seu pensamento, sem ela os indivíduos se anulariam, mas uma vez dela tolhidos e desejosos por tê-la de volta, lutariam bravamente para reconquistá-la.
O “Discurso da Servidão Voluntária” é uma obra clássica, capaz de trazer elementos para pensar o mundo contemporâneo e contribuir para que a tirania seja combatida e enfraquecida por meio apenas de uma decisão: não apoiá-la.
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Referência Bibliográfica
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da Servidão Voluntária. (Tradução: Casemiro Linart). São Paulo: Martin Claret, 2017.
[i] LA BOÉTIE, 2017, p. 36.
[ii] Ibid., p. 42.
[iii] Ibid., p. 47.
[iv] Ibid., p. 49.
[v] Ibid., p. 46.
[vi] Ibid., p. 61.