Quando mergulhamos em um ambiente acadêmico, no qual somos orientados a romper com as prenoções do senso comum, aprendemos a tomar distância do imediatismo ao analisar o cotidiano com mais sofisticação. Como estudantes de ciências humanas devemos assistir aulas, ler bibliografias sobre diversos temas, identificando que o olhar que tínhamos da vida social é rasa e vaga. É tarefa importante observar o mundo social como um mundo desconhecido, romper com a ilusão da transparência, com um certo dogmatismo natural.
Ao tomar gosto pelo conhecimento e percebermos as possíveis lacunas teóricas, nós, acadêmicos, podemos, com rigor, apontar uma nova hipótese sobre um determinado fenômeno, e testá-la duramente. Ou mesmo adentrar numa pesquisa singular exploratória. Assim o conhecimento avança. Isso é louvável.
No entanto, há uma questão importante. Seja numa leitura mais atenta sobre um determinado tema, seja na hora de fazer uma pesquisa, não podemos confundir teoria e realidade. Neste ponto, é obrigação para qualquer pesquisador ter vigilância epistemológica.
Quando um pesquisador(a) das ciências humanas tenta ler a empiria social, escolhe uma fração desta. Seu objetivo é a busca de causalidades. Tentar explicá-la. Ao analisar o fragmento, dispõe de algumas ferramentas teóricas, arbitrariamente escolhidas. Daí em diante, observa se tais ferramentas conseguem ou conseguiram dar conta de elucidar o comportamento de indivíduos ou grupos, dentro de um contexto espaço-temporal.
É bem possível que determinadas hipóteses de pesquisa não funcionem ou funcionem parcialmente. Isso remete a um esforço intelectual bastante atento e honesto, com risco de comprometer a pesquisa. Ou seja, ter cuidado para não impor o que achamos que deveria ser – uma prescrição -, contrariando o que a realidade realmente é naquele momento. Não confundir o “deve ser” com “o que é”.
“O que é” pode ir de encontro com o que “deve ser”. O objeto ou fenômeno analisado pode trazer outros resultados, e daí, claro, temos por dever (honestidade intelectual e moral) apresentar a pesquisa de acordo com o que ela realmente apontou. Este é o papel do pesquisador sério. E ele sabe, inclusive, ou deveria saber, que as conclusões não são definitivas: sempre serão provisórias! Por quê? Porque qualquer outra pessoa pode fazer uma mesma pesquisa e encontrar resultados bem diferentes, num mesmo contexto ou em outros. E qualquer risco de grandes generalizações, evidentemente, cria sérios problemas teóricos.
Próximo degrau. Quando um leitor, acadêmico ou não, se debruça sobre um tema, na área de humanidades, que lhe agrade, deve tomar cuidado pra não confundir teoria e mundo. E não é incomum sermos tentados a fazê-lo. Afinal de contas, é maravilhoso quando aumentamos o nosso capital cultural sobre as relações sociais, e nos sentimos “autorizados” a falar por aí. Mas, a leitura mais coerente, é de que a realidade é muito mais complexa do cabe em algum conceito. Se não tivermos esse cuidado, aplicamos o conceito sociológico ou filosófico, por exemplo, em tudo que é lugar (tentação assustadora), usando a muleta de “análises de bolso” (parafraseando o colunista Thiago Pinho), sem antes fazer algum tipo de exame mais crítico e profundo, numa linguagem mais erudita, que demanda mais pesquisas, vasta leitura e o mais importante: um senso de humildade sobre a busca do conhecimento. Não à toa, estamos presenciando todos os dias conceitos vazios, soltos, descontextualizados na internet (democracia, liberdade, direita, esquerda, povo), e uma devastação de rótulos (fascista, comunista, machista, sexista) sendo aplicados a torto e a direito, principalmente com aqueles que não estão em conformidade com nossas expectativas ou nossas “verdades”.
Precisamos de calma! O conceito não pode abarcar a existência, porque esta escapa a qualquer imagem estática. Se nos apegamos a uma teoria, e abraçamo-na, desesperadamente, mais por afetividade do que por evidência lógica, não existe mais separação: a realidade é somente um apêndice que deve encaixar-se na visão de mundo adotada como uma verdade última. Caímos numa ortodoxia. Empobrecemos a própria realidade, asfixiamos a capacidade de ampliar o olhar sobre o mundo e suas inúmeras conexões. Atrofiamos qualquer possibilidade de observar as nuanças, as diferenças, as singularidades, os desvios, as contradições, imprevisibilidades. No limite, a realidade se transforma numa mera ficção. Os pormenores da experiência vivida, as subjetividades e suas relações são ignoradas por uma lógica universal, já que não existe mais exceção.
Quando um pesquisador pouco sério com sua profissão ou um leitor desavisado que leva tudo muito a sério, por má fé e/ou para reforçar crenças particulares, caem no erro fatal de não separar realidade concreta e o conceito sobre ela, pois a apreensão intelectual sobre a realidade é apenas uma representação desta, uma leitura possível, e não uma verdade última. Ao ignorar tal lição, aflora o dogmatismo (agora o dogmatismo intelectual), e a incapacidade de mudar de posição, afinal tudo já está bem explicado, e o outro em nada contribui ao questionamento. O outro, como objeto e não sujeito de potencialidades múltiplas, nada tem a acrescentar. Tudo já está posto. Os fatos, em qualquer contexto, acabam virando abstrações teóricas, e as evidências, provas ou documentos perdem importância, pois todas elas confirmam uma percepção fixa sobre o real. As exceções são simplesmente anômalas ou inexistentes.
Assim, nobres leitores, o dogmatismo ingênuo do senso comum não é muito diferente do dogmatismo ingênuo intelectual travestido de linguagem culta.
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