Pedro Nabuco
A trama se desenrola no julgamento por fraude de Sabzian, que se passara por um diretor de cinema famoso, Makhmalbaf, de que é grande fã, perante uma família de classe média, enganando-a durante alguns dias, até ser desmascarado e preso. Tais fatos realmente aconteceram e geraram uma matéria sensacionalista publicada numa revista iraniana. O diretor Abbas Kiarostami, ao tomar conhecimento da história, entrou em contato com Sabzian, e propôs transformá-la em filme, no qual o falseador atuaria como ele mesmo.
Assim, a narrativa flutua entre a ficção e o documentário, misturando realidade e invenção, de modo a tornar impossível discernir seus limites. A narrativa de Abbas Kiarostami tem seu impulso na vontade de Sabzian — que é universal — de ser alguém que não é. O pai de família pobre, que foi abandonado pela mulher por ser alguém ‘sem futuro’, é um homem condenado ao sofrimento.
O discurso de Sabzian, durante seu julgamento, transmite de uma forma sincera e profunda, sem apelações, como a miséria mina as esperanças e reduz a ambição do homem ao próximo prato de comida.
No protagonista de ‘Os Ciclistas’, película cujo enredo também trata do sofrimento dos despossuídos, Sabzian vê sua própria vida sendo contada. A emoção de ver-se repetido em formas artísticas tem um efeito imenso sobre ele. Sabzian é alguém consciente de sua condição. Justo por isso, deseja deixar de ser quem é. Conformar-se a um destino de miséria seria abandonar seu sonho de transmitir algo de sua vida para os outros, de ser reconhecido.
É um instante banal que modifica a vida de Sabzian. Enquanto lia o roteiro de ‘Os Ciclistas’ no ônibus, uma senhora senta-se no banco ao lado e puxa conversa sobre o livro. Então ele se apresenta como Makhmalbaf e passa a sê-lo diante dessa mulher e sua família, levando-os a crer que participarão de seu novo filme, assim como passa a visitar sua casa como possível local para as filmagens. Sabzian não esperava tirar qualquer proveito ao enganá-los. Mantinha a atuação porque lhes demonstravam respeito e admiração, porque sendo Makhmalbaf ele se sentia autoconfiante, além do fato de que seu desejo profundo pela arte encontrava uma forma de satisfação.
Ao ser questionado pelo juiz sobre o crime de fraude cometido, Sabzian não recorre a argumentos racionais para se defender. Ele tem consciência de que transgrediu uma lei e que há uma punição prevista para o ato. Não teme o cárcere e se dispõe a enfrentá-lo, sem questionar sua justiça ou injustiça. Uma vez que decidiu inventar para si um papel, Sabzian iria experimentar as consequências de sua criação. Sua defesa ao juiz não nega o crime, o descreve intimamente.
Kiarostami não deixa de denunciar a responsabilidade social pelo sofrimento do protagonista. Close Up é mais do que um filme sobre metalinguagem, é também uma narrativa bastante direta sobre a luta humana contra o destino limitado e aprisionante que a pobreza traça. O tom digno e fatal com que Sabzian fala de sua angustiante condição torna ainda mais bela a resistência que lhe opõe.
Ao contrário do que as circunstâncias indicariam, Sabzian ama a vida. Em dado momento de seu julgamento, lhe questionam qual papel gostaria de fazer como ator, e responde ‘o meu’. Sua motivação em atuar é poder contar a própria história, e ser capaz de emocionar os outros. Busca afetar como o cinema lhe afeta.
O filme é trágico, assim como a narrativa do sofrimento desvela a realidade em seus aspectos mais duros, não existindo romantismo diante da miséria. Todavia, a persistência de Sabzian ante a dor nos incute uma forma poderosa de alegria pela vida. Assim, Close Up exalta o sonho, o desejo de ir além, a potência da vontade criadora.
Sabzian é um homem absurdo, como descrito por Albert Camus. Consciente de sua condição humilhante, ele se revolta contra ela, negando-a. Mas se nega, não busca uma fuga desesperada. Sua rejeição ao destino miserável não é a troca do mundo real por um ideal.
Sabzian diz ‘não’ para afirmar a si mesmo, e o seu ‘sim’ é dito para este mundo, com sua miríade de dores, e suas inevitáveis belezas. O que almeja não é propriamente uma redenção dos destinos que carregam sofrimento e injustiça, mas a possibilidade de criar outros destinos a partir destes, de repetir — e transmutar — a vida na arte e a arte na vida.
Sabzian: um herdeiro do abandono social e da impotência econômica, aferroado à contingência de ser quem é. Um herói de força improvável, um criminoso que esbanja inocência, calmo e ousado amante da vida. O ator absurdo que exalta a paixão em compartilhar com outros homens e mulheres da vontade criadora.
“Sempre que estou deprimido ou transtornado, sinto o desejo de gritar ao mundo a angústia da minha alma, os tormentos que passei, todas as minhas tristezas, mas ninguém as quer ouvir. Eis que chega um homem que retrata todo o meu sofrimento nos seus filmes e posso ir vê-los uma e outra vez.” (Sabzian)
“Exalto o homem diante do que o esmaga e minha liberdade, minha rebeldia e minha paixão se unem nessa tensão, nessa clarividência e nessa repetição desmedida” (albert camus, o mito de sísifo)
“O ator reina no perecível. É sabido que de todas as glórias a sua é a mais efêmera. Isso pelo menos é dito nas conversas. Mas todas as glórias são efêmeras. Do ponto de vista de Sírius, as obras de Goethe dentro de dez mil anos serão pó, e seu nome será esquecido (…) de todas as glórias, a menos enganosa é a que se vive.” (albert camus, o mito de sísifo).
Referência da Imagem:
Cena do Filme