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UM GRITO DE SOCORRO – ESPERANÇA GARCIA


Por Raíssa Xavier*

Iniciei um movimento em 2019, junto com mais duas mulheres, Lucélia Pontes e Mariana Rodriguez, chamado Vozes Transeuntes. O movimento permitia o preenchimento de espaços vazios através da leitura de poesias, poemas, sonetos e pequenos contos escritos por autoras de épocas diversas, transmutando relações e lugares através da itinerância da performance. Erámos mulheres lendo mulheres.


O ano em voga nos trouxe para um lugar de ressignificar e transformar o que acreditamos que deve se manter em atuação. Decidimos, então, que as nossas vozes não iriam se calar por conta de nenhuma pandemia. Ao contrário, expandimos essas vozes através de podcasts semanais, sempre com um convidade diferente. Passamos a ser feminino lendo feminino.


Nos podcasts lemos e discutimos os textos que nos despertam ligados a um determinado tema. Convidar alguém de fora tem somado muito conhecimento, além de nos manter sempre com a mente ativa e questionadora. Essa semana, estivemos conversando com a historiadora e pesquisadora, Raphaela Ferreira, que aborda em sua tese de doutorado, as mulheres escravas da zona da mata de Pernambuco e seu papel crucial para leis libertárias.


Pensar nessas mulheres, negras, escravas, exploradas, não alfabetizadas, criando o seu protagonismo na busca da sua liberdade, na década de sessenta, antes mesmo da Lei do Ventre Livre existir, me inspirou a fazer uma pesquisa mais profunda na nossa história e me deparei com o nome Esperança Garcia.


Nem de longe podemos dizer que Esperança teve uma vida fácil. Ela era escrava, casada e possuía filhos onde vivia sob as ordens de padres jesuítas, a quem, provavelmente, lhe devia a alfabetização. Naquele tempo, era proibido ensinar escravizados a ler ou escrever, sob pena de serem presos ou processados. O conhecimento sempre foi temido pelo alto poder – nenhum governo, até os dias de hoje, desejou ter uma população consciente e crítica, que possa vir a questionar as ações do Estado e seus direitos.


Ocorre que, Esperança foi tirada à força de perto da sua família e tentar sobreviver a uma vida dura sem as pessoas que ama ao lado, é despertar todos os sentidos de uma mulher.


Em 1770, em uma época que não se reconhecia as vozes das mulheres, principalmente, a dos escravizados, uma mulher escravizada contradiz à estrutura sistêmica e se arrisca a fim de voltar a estar ao lado dos seus. Esperança Garcia escreve uma carta direcionada ao mais alto escalão do Piauí denunciando os maus tratos em um relato direto, emocionante sobre a dor e o desespero de pertencer a alguém. Veja:


“Eu sou uma escrava de V.S.ª. administração de Capitão Antônio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, onde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S.ª. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda onde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha. De V.S.ª. sua escrava, Esperança Garcia” (Carta em versão atualizada).


Não se sabe quantos escravizados alfabetizados existiam nessa época, mas, até o momento, esse é o registro mais antigo da época da escravidão, lhe concedendo inestimável força histórica.


Inicialmente, é admirável a escrita usada na carta. Com certa formalidade, Esperança Garcia utiliza-se de pronomes de tratamento ao se dirigir tanto ao seu Senhor, como à autoridade que envia o documento. Apesar da denúncia de maus tratos, demonstra respeito e reconhece o seu lugar enquanto escrava.


É esse lugar de reconhecimento como escrava que me intriga. Perceba que não há nenhum pedido para que a libertem, a única coisa que solicita é a transferência de volta para a fazenda que trabalhava junto à sua família.


Os escravos eram propriedades dos seus senhores, tidos como objeto, registrados em contratos, não podiam possuir ou doar bens, tão pouco iniciar processos judiciais. O único “direito” que eles tinham era de serem punidos. Na época que essa carta foi escrita, não era permitido nem sonhar com a liberdade. Somente a partir de 1850 que começaram a tomar medidas efetivas para o fim da escravidão no Brasil.


Repare que ao usar a palavra reconhecimento, me refiro a questão de consciência da sua condição e possibilidade de atenderem ao seu pedido, não a aceitação da escravidão. O manuscrito demonstra justamente a resistência às agressões escravagistas, um marco na luta da equidade de direitos entre negros e brancos.


Quando escreve “estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos”, observe que ela, junto com outras mulheres, já estava em busca de denunciar os maus tratos ocorridos na fazenda.


Trazendo para os dias atuais, já sentimos enorme dificuldade de denunciar a violência doméstica, nós, mulheres, livres. Muitas vezes, essas denúncias não trazem medidas protetivas eficazes, o que coloca a vítima ainda mais em evidência.


Agora, imagine o significado de uma mulher, escravizada, conseguir denunciar uma pessoa de alto poder aquisitivo, passando por cima de todos os seus medos, inclusive, da morte.


Sobre as agressões evidenciadas, Esperança enfatiza, inicialmente, a violência infantil, mostrando que não há piedade nem com as crianças do lugar e, só depois, fala da violência contra si, relatando experiências de tortura e quase morte.


No fim, termina o seu registro com um apelo cristão, religião trazida pelos colonizadores e que os escravos eram obrigados a seguir. Entrando no jogo do Direito, com muita inteligência, utiliza-se desse recurso como autodefesa e convencimento pela fé.


Não há relatos se a reclamação de Esperança foi atendida, mas, de todo modo, é louvável a ação realizada por esta mulher, em um período em que não lhe era permitido escrever ou ler, muito menos reivindicar, ela revolucionou. Um exemplo de mulher que denunciou o seu algoz por um bem maior, sua paz.


No nome ela carrega o sentimento que me move: esperança. Esperança que um dia não precisemos mais gritar para sermos ouvidas, porque conseguiremos dialogar em igualdade e com respeito, sejamos mulheres ou homens, brancos ou pretos.


Viva Esperança!


* Atriz baiana e autora do livro 1/4 DE MIM. Participante do projeto Vozes Transeuntes.


Link da imagem: https://maisoeiras.com.br/noticias/artigos/esperanca-de-sinha-preta-e-das-minorias-por-millena-faustino/


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