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BANALIZAÇÃO DA MORTE NA DISTOPIA BRASILEIRA




Raul Seixas, em uma bela canção, “Canto para minha morte”, coloca a morte como a senhora do destino. Arrebatadora. Misteriosa. Imprevisível. Não sabemos quando ela virá: pode ser no próximo instante quando o coração se recusa a bater. Ou mesmo num acidente de carro. Ou, quem sabe, um escorregão idiota num dia de sol, a cabeça no meio fio. São tantas possibilidades que pode nos tirar a vida. Por isso, que “morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida”. E, de fato, não sabemos quando ela virá. Se parar pra pensar, melhor assim. Imagine se soubéssemos do dia da nossa partida? Será que realmente conseguiríamos aproveitar o tempo que nos resta? Será que conseguiríamos ser felizes? É interessante pensar sobre isso. Mas deixamos para um outro momento.


Mas podemos impedir mortes anunciadas. Não somos capazes de evitar mortes desnecessárias? Não temos tecnologia suficiente? Não temos capacidade de organização coletiva? Não temos responsabilidade? Sim, temos!


Moralmente, devemos evitar mortes desnecessárias por amor e respeito à nossa vida e compaixão aos demais. Se levarmos realmente a sério a compaixão, seguiremos a regra de ouro das religiões e filosofias, exemplarmente exposta em Mateus 7:12: "Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles”.


Bem, ao olhar para o Brasil de hoje, em meio à pandemia, que já arrebatou quase 80 mil pessoas, em mais de quatro meses, acompanhamos, tristemente, uma certa banalização da morte. Não foram poucos os que se negaram a acreditar, num primeiro momento, na ferocidade da covid-19. Seja por questões meramente ideológicas, psíquicas, má-fé ou ignorância mesmo, a máquina mortífera do vírus foi questionada. O “Trump dos Trópicos” também fez pouco caso:


“No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria[1], quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão”.


Num segundo momento, aqueles que não mudaram de ideia e ainda continuam resistindo, negando a ferocidade do vírus, achou que ele deveria ser encarado de frente, e quem tiver de morrer morrerá. “Morrerá quem já estava com alguma doença. Logo não é o vírus que mata, mas a debilidade da pessoa. Deixem de histeria!”.


Para alguns, o isolamento social, o comércio fechado, o toque de recolher e as medidas de segurança sanitária só estavam prejudicando a economia (com aumento de desemprego, lojas falidas e diminuição da demanda), o ir e vir das pessoas, o lazer, a praia, o cinema, a festinha do fim de semana, o churrasquinho com os amigos e parentes, o barzinho.


Definitivamente, não entenderam, ou custaram a entender, que não estamos numa situação normal. O bem-estar e a liberdade individual não estão acima da coletividade. Os tempos são excepcionais! O dito “cidadão de bem” quer exigir direitos a qualquer custo. Sintoma importante: cidadania no Brasil é sinônimo de direitos. Os deveres, lamentavelmente, são desprezados.


E ainda há o cidadão que se vê com mais direitos dos que outros, olhando a eminência da morte com descaso. Viram o caso recente do desembargador Eduardo Siqueira[2], de Santos? Caso típico de usar a ferramenta da autoridade para navegar por cima das obrigações sociais.


Neste cenário dantesco, distópico, os mais exagerados/extremados em Pindorama, parecem não estar nem aí se serão contaminados, ou se vão contaminar. A eles, a morte parece um fato banal! Não tem a ver com a morte inesperada. Não é como na questão da letra de Raul Seixas: “qual será a forma da minha morte? Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida”. Na realidade, é a glorificação da eminência da morte. E também do caos. A morte, aparentemente, os excita!


Mortalidades poderiam ser evitadas! Diminuindo a contaminação se reduziria a estatística. Ao exaltar a morte, os “espíritos de coveiro” desprezam o luto. Agem como indiferentes ao sofrimento.


O próprio chefe de estado brasileiro, alheio às mortes, disse: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”[3]. Em outra fala: “todos nós iremos morrer um dia”.[4] E mais: “Ô, cara, quem fala de... Eu não sou coveiro, tá certo?"[5]. Parece o puro tédio da morte.


Falações e comportamentos que devem ser execrados e ficarão como uma página maldita em nossa história. Um governante com seus seguidores que relativizam as medidas de proteção a contaminação do vírus. Um presidente que faz pouco caso com as vidas, comportando-se como avestruz: coloca a cabeça debaixo da terra e deixa a destruição à solta. Isso o excita?


Uma última questão para problematização. Lideranças e fieis extremados comportam-se assim por mau-caratismo, ignorância, patologia psíquica ou devido a uma forma de existir que os orienta, inconscientemente, no seu universo/mundo, sua ontologia? Cientificamente falando, é muito difícil fazer essa diferenciação. Causa ou efeito? Ambas as coisas? Do ponto de vista de pesquisa, a priori, não dá para sustentar uma tese precipitada. O erro é cair no senso comum. Separar esses tipos da realidade também é perigoso. Sem dúvida, precisamos de mais ferramentas teóricas. É importante termos em mente esse desafio de avançar. Precisamos. Esses atos não parecem ser meras excepcionalidades!


Contudo, na ótica do Direito, da organização e do respeito ao contrato social, não há dúvidas que essa separação pouco importa. Por que a operação deve ser pragmática. Se indivíduos cometem infrações devem ser punidos, sob risco de que a naturalização de atos ilegais saia do controle das instituições garantidoras da ordem. Da defesa da coletividade. Comportamentos imorais, no contexto da sociedade em que estamos vivendo, também devem ser totalmente repudiados e combatidos.


Até a próxima!



Link da imagem: https://www.folhape.com.br/noticias/mortes-por-covid-19-no-brasil-superam-as-causadas-pela-gripe-espanhola/143097/


Notas



[1] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/24/leia-o-pronunciamento-do-presidente-jair-bolsonaro-na-integra.htm


[2] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/07/19/desembargador-afirma-que-video-foi-editado-e-tirado-de-contexto-diz-tv.htm


[3] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/30/veja-frases-de-bolsonaro-durante-a-pandemia-do-novo-coronavirus.ghtml


[4] https://www.youtube.com/watch?v=oegOQ_IakoU


[5] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/nao-sou-coveiro-ta-diz-bolsonaro-ao-responder-sobre-mortos-por-coronavirus.ghtml



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