* Por João Mendes
No dia 9 de maio de 2020, a lona do circo Picolino foi ao chão. Chovia. O vento tratou de derrubar um dos últimos suspiros do picadeiro, levando consigo um pedaço da minha infância.
Me questiono.
Afinal, se um colosso das artes circenses despenca em meio à pandemia, enfraquecido depois de anos de abandono, existe algo que possamos aprender com isso?
Não pretendo cruzar o texto apenas falando da minha experiência com o circo, nem do sentimento inquietante de ter passado tantas vezes pela frente da lona frouxa e visto que, cada dia mais, o espetáculo vinha sendo abandonado. Esquecido, persistia entregue às traças.
Durante longos anos, o circo da minha infância definhou em silêncio. O vento foi só a tragédia natural do que já vinha sendo anunciado. Era certo, as lonas um dia haveriam de cair, como sempre caem. Só que dessa vez, não haveria força de vontade que a fizesse recuperar o eixo.
Afinal, para que levantar?
Levantar só para cair de novo?
E do que vale manter de pé um circo vazio?
Caindo no silêncio.
Sei que ainda existiam atividades acontecendo no Picolino, como sei também que outra companhia tratou de doar uma nova lona. Sei de tudo isso, mas ainda considero necessário trazer o debate sobre a eterna disputa da arte contra a gravidade.
Por que o artista tem que estar sempre lutando contra a falência? Contra a queda? Sempre lutando para se manter de pé, apesar de tudo.
Nos tempos de pandemia, quando temos de ficar em casa. Quando as pessoas começam a conhecer o real sentido do tédio, a arte se faz presente. A válvula de escape, o refúgio, a motivação de se enfrentar os dias. Por de trás de tudo, existe a arte.
Naqueles que se maquiam, revelando-se artistas. No entretenimento, frente ou atrás das câmeras. Ainda assim, mesmo quando arte se faz necessária, por que ainda se luta para ficar de pé?
A arte sustenta o tempo, mas quem sustenta a arte?
Penso que, talvez, enquanto as pessoas continuarem enxergando apenas o entretenimento, sem sequer enxergar os rostos por de trás do espetáculo, talvez a arte esteja sempre fadada à queda.
Afinal, não estudamos o palco como uma profissão. A criança mais desenvolvida para o teatro não se equipara à mais talentosa para matemática.
A segunda, uma estudiosa.
Já a primeira, uma exibida.
Como podemos consumir a arte e ainda assim não apoiá-la? Buscamos refúgio nela enquanto falamos as piores coisas aos estudantes. Sentenças sobre desemprego, fome ou loucura.
Acredito que o artista não deveria ser aquele sofre, que resiste. Pois não há poesia na dificuldade financeira, no desgaste, tampouco na insanidade. Talvez, em um mundo ideal, o artista será aquele como qualquer outro. Nem mais ou menos especial. Considerado útil como qualquer outra engrenagem que nos mantém vivos.
Ainda assim, falar sobre utopias parece nos afastar da realidade. Tendemos a descrever o mundo perfeito, mas pouco fazemos para realizar a miragem. Muito além do circo e suas lonas, dos artistas e suas inquietações, esse texto é, acima de tudo, um apelo.
Se a queda do artista é inevitável, ao menos pode-se adiar o fim. Aplausos alimentam o ego, mas não a carne. Por isso, faça pela arte local o que não fomos ensinados a fazer. Valorize, divulgue, ajude como for possível. Compre.
Gaste com a arte o valor que ela tem tido na sua vida.
Lembre-se, por de trás de cada minuto de entretenimento, existe o suor de alguém. Uma pessoa de verdade que investiu seu tempo naquilo. Um artista. Não são tempos fáceis para a liberdade, tampouco para a arte. Algumas lonas haverão de cair, mas isso não significa que não possamos erguer tantas outras.
* João Mendes. Escritor baiano. Estudante de cinema e teatro. Autor de "Aos trilhos que me atravessam"
Link da imagem/notícia: http://atarde.uol.com.br/cultura/noticias/2127093-lona-do-circo-picolino-desaba-por-causa-da-chuva