É dia de chuva em Salvador, as camisas de frio estão sendo arrancadas do fundo do guarda-roupa, a preguiça ainda insiste para saborear a cama alguns minutos a mais. Em plena pandemia, a cidade está em movimento. As engrenagens rodopiam e os pobres contribuem com os braços calejados. Como sempre os ônibus permanecessem lotados. É assim começa o dia, comigo e tantas outras pessoas se espremendo no coletivo, realizando aglomerações de trabalhadores sem escolhas. O que por si só já merecia essa reflexão, mas o que leva o tema desse texto é o que acontece logo em seguida.
No primeiro anúncio da chuva, os passageiros que estão encostados rente à janela tratam de vedar qualquer passagem do vento. Puxam os suportes e fazem do coletivo uma estufa. Toda respiração embaça o vidro e o sopro quente vagueia entre os passageiros sem encontrar uma saída. Além de aglomerados, agora não há sequer lugar onde possa correr o vento.
Somos moscas presas em teias de aranha. Como um predador, o vírus vem lento, passeando entre os fios, pronto para devorar nossas entranhas. Nessa hora me questiono, como pode o povo ter mais medo da chuva do que de um vírus que pode trazer a morte nos braços? É pior estar molhado que chorar o enterro de um parente? Afinal, onde está a sanidade daquelas pessoas que se aglomeram em estufas coletivas?
Acho que existe algo mais. Segue agora apenas fruto de especulações, afinal, não posso fazer mais sobre a mente dos outros do que traçar uma hipótese. Estão todos desconfortáveis, todos sabem sobre o vírus e o efeito das janelas fechadas. Talvez seja justamente pelo medo que tentam enganar a si mesmo ao fingir que a chuva é o pior dos problemas. Olhando um pouco mais de perto, vejo que costumam olhar mais o relógio do que verificar a vedação da máscara.
Nasce outra preocupação maior do que o vírus, o horário. O medo de chegar atrasado, de receber uma reclamação. A angústia de poder ser demitido em pleno estado de calamidade. Perto disso, o que é invisível, embora letal, parece perder a força. É como se todos estivessem alienados por pura questão de sobrevivência. Como se passar pela barreira de pôr os pés na rua diariamente fosse um caminho sem volta, um estalo. Afinal, enquanto outras pessoas perambulam em passeios, enquanto os patrões se protegem em viagens isoladas, são os operários que precisam enfrentar as estufas coletivas. Não resta escolha, talvez reste! Talvez seja preciso escolher entre a segurança e o desemprego.
Assim, percebo que os olhares estão tensos, que ninguém deseja verdadeiramente estar ali. Mesmo desse jeito, sei não haver justificativa para a irresponsabilidade, mas reflito sobre o medo. Afinal, do que o povo realmente tem medo? Será que a pobreza assusta mais que a morte? Será o desemprego o verdadeiro predador? Até lá, seguimos dentro das estufas distribuindo nossos olhares nervosos sem jamais tocar no assunto. Seguimos em frente, fingindo que a chuva é o pior dos nossos problemas.
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