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"Um" Último Capítulo


“Há entre os suicidas um excelente costume, que é não deixar a vida sem dizer o motivo e as circunstâncias que os armam contra ela. Os que se vão calados, raramente é por orgulho; na maior parte dos casos ou não têm tempo, ou não sabem escrever. Costume excelente: em primeiro lugar, é um ato de cortesia, não sendo este mundo um baile, de onde um homem possa esgueirar-se antes do cotilhão; em segundo lugar, a imprensa recolhe e divulga os bilhetes póstumos, e o morto vive ainda um dia ou dois, às vezes uma semana mais.” (ASSIS, MACHADO, 1984).


A dica da minha coluna dessa quarta é de teatro. Na última semana, tive o prazer de presenciar (virtualmente) um espetáculo híbrido, misturando elementos cênicos do teatro com recursos de áudio visual, lindo e emocionante: O Último Capítulo. O evento é promovido pela Toca de Teatro, companhia idealizada pelo ator e empreendedor artístico Danilo Cairo.


Se você acompanha meus textos, sabe que não sou crítica de teatro ou cinema, o que não me restringe a escrever sobre. Trago aqui sempre o que me toca, e esse é o caso de hoje.


Como psicóloga, vivencio no meu ofício constantemente a intimidade com o comportamento suicida, seja como servidora municipal ou com pacientes particulares. Tenho um carinho especial por essa temática.


E não me entenda mal, leitor e leitora! Não me refiro aqui a uma afeição ao suicídio em si, mas sim às pessoas que são afetadas por essa condição.


Não escolhi isto. Fui escolhida, de alguma forma, desde o início da minha prática clínica no Caps.

E, ao longo desses anos, os casos foram só aumentando. Não creio que somente pelo fato de as estatísticas crescerem, mas também pela maior informação e consequente busca de ajuda (e ainda bem!).


Falar de suicídio sempre foi e ainda é um grande tabu na sociedade. O medo do Efeito Werther – nome dado ao fenômeno social de um contágio do comportamento suicida – leva uma parte da população a acreditar que à mínima menção dessa palavra, alguém será incitado a se matar.


Esse fenômeno tem tal nome por conta do romance Os Sofrimentos do Jovem Werther, do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe. Após o seu lançamento, em 1774, teria ocorrido na Europa uma onda de suicídios, atribuída à influência do personagem de Goethe.


No romance, Werther atira em si próprio com uma pistola depois de ser rejeitado pela sua amada Charlote, e logo após sua publicação, começaram a existir relatos de jovens usando o mesmo método para se suicidarem em um ato de semelhante desesperança. Esta situação teria provocado o banimento do livro em diversos lugares, como Leipzig e Copenhague. E em Milão, o Arcebispo ordenou a compra de todos os exemplares e os queimou em praça pública.


Esse suicídio copiado é definido como a emulação de um outro, do qual a pessoa com ideação suicida toma conhecimento, através de diferentes meios de comunicação, como televisão, livros e a internet, de forma indiscriminada.


É claro que faz-se necessário ter cuidado em como abordar o tema, mas não se deve calar a informação sobre quais os possíveis sinais, sintomas, falas e formas de ajudar quem pensar em se suicidar.


À medida que nos comunicamos com responsabilidade sobre o suicídio, mais pessoas saberão de que forma ele pode aparecer e como devem proceder para ajudar, ao invés do simples, velho e inútil: “A vida é bela, não pense nisso rapaz!”; “Deixe de drama, você é tão jovem!”, etc.


Temos que nos adaptar à realidade e não esconder o que nos assusta. Esse é o objetivo, desde 2014, da campanha do Setembro Amarelo, promovida pela Associação Brasileira de Psiquiatria e dedicada à prevenção do suicídio.


E foi isso que Danilo Cairo, juntamente com uma equipe dedicada, fez em "O Último Capítulo". Se adaptaram e ultrapassaram as barreiras da pandemia, para manter um espetáculo poético e realista - que fala de morte, mas sobretudo de vida. O projeto já havia acontecido na modalidade presencial em 2019.


Como cheguei a “O Último Capítulo”? Estava passando pelos meus stories, quando fui surpreendida pelo anúncio da peça online e logo me interessei. Comprei o ingresso de imediato e aguardei o dia da estreia. Mas acreditem, nada que eu imaginasse sobre o evento teria o poder de prever o que estava por vir.


Me impactei em como me senti imersa pelo espetáculo, como se estivesse assistindo de dentro da sala de teatro, mesmo que diante da tela deste computador no qual escrevo agora.


A forma como o roteiro foi construído encaixou perfeitamente com o momento de isolamento social. Adentramos a casa do personagem, convidados pelo mesmo. Ele, o anfitrião de um evento transmitido em rede social, para dar fim à uma vida, à sua vida, de azar e desgostos, ou seja, ao seu sofrimento.


Evento esse que envolveu muita beleza. Beleza de enxergar através dos olhos de Matias Deodato tantos e tantas que já pensaram em atuar da mesma maneira, em virtude de suas tristezas e dores, em meio às lembranças, constatações, questionamentos. Tantas e tantos que já estiveram em frente a mim ou não, dizendo aquelas mesmas palavras.


Passamos pela sua história, numa trajetória melancólica, desamparada, lírica e vívida. Trajetória humana! Visto que aquilo pode suceder com qualquer um de nós.


Não tenho como analisar completamente os recursos artísticos, no entanto devo registrar aqui, como espectadora, que o ritmo do roteiro é primoroso na medida em que nos leva a tantas instâncias, mesmo com a limitação da situação atual. Tudo muito bem pensado, conduzido pelas diversas câmeras espalhadas pelo cenário.


Penso que a Casa Preta (espaço cultural localizado no bairro Dois de Julho) foi uma ótima escolha para receber a casa de Matias, pelas possibilidades que proporcionou à equipe. A trilha sonora e iluminação também estavam impecáveis.


Ah, faltou mencionar que o enredo é inspirado no conto de Machado de Assis. Mais um motivo para conferir. Machado é Machado, não acham? Sou suspeita, tenho uma queda por sua obra. O trecho que inicia meu texto foi retirado deste conto.


Enfim, só posso dizer, para finalizar, que a emoção e a reflexão tomaram conta de mim naqueles pouco mais de 40 minutos. E que fiquei muito orgulhosa de ver um projeto tão bonito sendo desenvolvido em solo soteropolitano, retratando assunto de suma importância com delicadeza e responsabilidade afetiva.


Se tiverem oportunidade, não deixem de assistir! O espetáculo está em cartaz nas próximas segundas feiras de setembro (mês de prevenção ao suicídio), sempre às 20hs. A transmissão é feita através do Youtube e os ingressos estão à venda no Sympla, variando de preço - você pode escolher o que mais se adeque a sua renda.


E não se esqueça: “A cada 40 segundos, a cada 40 segundos, a cada 40 segundos...” alguém pode estar dando adeus, alguém ao seu lado pode ser um/uma Matias dando adeus.


Já é sabido que 90% dos suicídios podem ser evitados. Por isso, pergunte, acolha, escute sem julgamento, não vá com suas lições de moral e ofereça sua ajuda. Assim, o sofrimento pode ter outras vias para ser escoado, ressignificado, e os/as Matias, de perto ou de longe, poderão viver muito mais que “um dia ou dois, às vezes uma semana...".




Referências:

Último Capítulo. ASSIS, Machado. Volume de contos. Rio de Janeiro: Garnier, 1884.


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