Existem alguns problemas que identifiquei no documentário o “Dilema das Redes”, o mais famoso produto da nossa querida (ou odiada) Netflix. Embora o considere um ótimo material de entretenimento, da mesma forma que Black Mirror é perfeito numa sexta-feira à noite, algo parece diferente nesse cenário, algo parece estranho demais. Quando acompanhados de pizza ou de uma vasilha com pipoca, ambos conseguem preencher muito bem aquele tempo ocioso, aqueles instantes de puro lazer. Apesar das proximidades, e dos pontos em comum, como o próprio pessimismo tecnológico, por que temos a impressão de que o “Dilema das Redes” é mais real do que Black Mirror? O que gera esse tipo de efeito? Embora seja um gênero cinematográfico como qualquer outro, carregando consigo toda uma bagagem estética de fundo (direção, roteiro, fotografia, performance, trilha sonora, etc), por que o público em geral não enxerga o documentário como sendo um filme? Esse é o nosso primeiro tópico desse ensaio, seguido de outros problemas mais ligados ao conteúdo da obra.
1) O PROBLEMA CINEMATOGRÁFICO: Eu fui membro por quatro anos de um grupo de cinema na Universidade Federal da Bahia (UFBA), de 2012 até 2016. Essa experiência foi incrível e até hoje agradeço bastante a oportunidade que tive lá atrás, além de ter incrementado, e muito, meu repertório acadêmico. Nesse espaço cinematográfico, cheio de teorias e todo um vocabulário técnico, eu gostava de todos os gêneros possíveis, passando pelo drama, ação, comédia, e meu preferido, o suspense. Quase todos aqueles filmes me afetavam de um jeito intenso, mobilizando tudo em mim, até mesmo memórias que nem sabia que existiam. Um deles, por outro lado, não me agradava nem um pouco, sendo um tipo específico de arte que nunca conseguiu ganhar muito do meu aplauso, mesmo quando me esforçava ao máximo: ele era o DOCUMENTÁRIO!!!
Por alguma razão eu me incomodava com a forma como documentários eram construídos e, principalmente, recepcionados. Apesar de ser um gênero dentro do cinema, assim como um elemento artístico como outro qualquer, o documentário era o único que conseguia ocultar os rastros estéticos nos seus bastidores, escondendo assim seu potencial criativo e performático, postura essa que outros gêneros, ainda que tentassem (como o neorealismo italiano ou filmes do Dogma 95), não conseguiam. O documentário, na esmagadora maioria das vezes, disfarça bem suas digitais estéticas, quase como um artista envergonhado com a própria performatividade. Com sua trilha sonora dramática, e sua fotografia carregada de suspense, além de uma edição suave e com uma ótima costura, o documentário quase sempre é levado a sério, principalmente quando uma VOZ OVER é colocada sobre nossas cabeças. Esse tipo de narrador emite um som do além, uma narração que acompanha as cenas de um jeito firme, paternal, onisciente, mas sem que nenhum corpo seja identificado, quase como uma voz celeste que ecoa dos céus e nos toma de surpresa. Essa voz, quase sempre linear, limpa e confiante acaba conferindo credibilidade em tudo que toca, como acontece com os âncoras nos jornais da TV. Essa voz dos céus, além de uma narrativa dramática e impactante, oferece um tom sério e descritivo ao que é narrado, como o clássico Morgan Freeman e sua voz poderosa, séria e VERDADEIRA. Mas é comum também usarem cientistas, pessoas com prestígio na área, mas apenas a parcela selecionada a dedo, o que cria a impressão tanto de consenso sobre o assunto, como de simplicidade dos argumentos.
“O documentário O Dilema das Redes é um material ruim?”, pergunta você. Claro que não, muito pelo contrário. Ele é
uma ótima narrativa, um excelente trabalho, mas desde que o público nunca perca de vista o critério de avaliação. Ou seja, documentários devem ser avaliados por um critério estético (belo ou feio, criativo ou não criativo), e não epistemológico (verdadeiro ou falso). Infelizmente, como o cinema documental mascara com facilidade sua trajetória estética, podendo se apresentar de forma descritiva e sólida, a maior parte das pessoas são capturadas por essa maquiagem cinematográfica. Basta ter um narrador “over”, um conjunto de “especialistas renomados”, além de trilhas sonoras impactantes e vídeos bombásticos, assim como uma fotografia séria e envolvente, e todos se curvam aos documentários sem qualquer resistência. Não é de se surpreender que abordagens políticas e ambientais adoram esse tipo de arte, em especial porque podem ao mesmo tempo usar os recursos de qualquer plataforma cinematográfica (edição, roteiro, direção, performance, etc), mas sem deixar transparecer suas digitais artísticas, criando a imagem de um puro exercício descritivo e de um compromisso claro com a VERDADE.
Como disse antes, o documentário é ótimo, muito bem elaborado, assim como aquele de Petra Costa (Democracia em Vertigem), indicada ao Oscar em 2020, mas eles não podem jamais ser substitutos de fontes epistemológicas sólidas, como pesquisas, artigos e congressos, principalmente aqueles documentários com um tom paranóico e simplista (infelizmente esses são os mais bem sucedidos). Documentários são construções envolvendo um recorte muito conveniente e simplificado da realidade, um produto de um script, de uma enorme equipe preocupada com uma única tarefa: reforçar (sempre) um único e “óbvio” argumento. Contradições, incoerências e falhas tendem a ser afastadas em nome de um fluxo linear de raciocínio, assim como um filme qualquer tem um enredo previsível atravessando tudo que toca. Em outras palavras, jamais use um documentário como referência de análise, mas apenas, no máximo, como um elemento pontual e provisório dentro de uma investigação científica. Documentários não explicam nada, mas devem ser explicados. Quando trazidos para o interior de teses e dissertações, o cinema documental é sempre inserido como um objeto de investigação, ou até um complemento, mas nunca como uma matriz interpretativa que orienta nossos olhos.
2) A ESTRUTURA PARANOICA E CONSERVADORA: A mensagem do documentário é simples, atraente e direta, resgatando a clássica imagem de um grande sistema nos bastidores, uma grande maquinaria que nos oprime de um jeito absoluto, embora sútil. Palavras que definem esse novo sujeito digital, como “fantoche”, “robôs”, “zumbis”, além de muitas outras que podem ser vistas no documentário, sustentam esse pano de fundo paranoico, essa aposta de que somos controlados 24 h por dia, fazendo da nossa experiência um subproduto sem graça de processos suspeitos. Essa forma de narrativa não é nova, sendo algo de atraente nos últimos tempos, como é possível perceber em narrativas distópicas que atravessam cada vez mais nossos filmes, séries e novelas. Vamos fazer um teste rápido!!! Olhe agora na sua conta da Netflix quantos documentários carregam premissas paranoicas, quantos compartilham dessa estrutura de narrativa, e logo depois observe o sucesso que fazem. Podem não falar de redes sociais, mas falam de alienígenas, sociedades secretas, consumo de carne, mercado da beleza, aquecimento global, indústria de cigarros, atentados terroristas, etc. O “Dilema das Redes” se apresenta como revolucionário, como algo único na lista de entretenimentos da Netflix, embora, na verdade, apenas se junte a outras tantas toneladas de narrativas distópicas que satisfazem nossas noites de sexta-feira repletas de pizza, pipoca e cerveja.
Como qualquer documentário, ele é um grande entretenimento, embora se apresente com jaleco branco e citações dispersas de grandes pensadores. Sem dúvida é divertido, muito bem costurado, incluindo até mesmo trechos ficcionais com atores, mas todos que trabalham com sociologia digital sabem que a coisa é muito mais complexa, diversa, e confusa, do que parece. Apresentar a narrativa como um todo coerente, como se as partes compartilhassem de uma forma óbvia e simples, é só mais uma manobra traiçoeira da estrutura do documentário. Ou seja, se quer assistir o “Dilema das Redes” com pipoca e refrigerante, curtindo sua narrativa e seus encadeamentos, na companhia de um amigo ao lado, vá em frente, mas não queira transformar aquilo no suporte dos seus argumentos. Como disse antes, o critério é sempre estético (belo ou feio, criativo ou não criativo), e nunca epistemológico (verdadeiro ou falso).
3) REDUCIONISMO DIGITAL: Toda área de conhecimento, seja ela de humanas ou exatas, tem seus extremos, seus instantes de reducionismo exagerado. No campo digital não é diferente. O “Dilema das Redes” estabelece uma relação direta entre o aumento dos casos de ansiedade e suicídio com a chegada das redes sociais, como se esse vínculo fosse óbvio ou mesmo exclusivo, quando, na verdade, a situação é muito mais complexa do que parece, como alguns estudos sobre neoliberalismo mostram muito bem. Essa tendência reducionista, no fundo, é um desdobramento do ponto 2, ou seja, uma extensão de uma linguagem paranoica e, por isso, simplificada, homogênea e que se apresenta como autoevidente.
4) A DEMONIZAÇÃO DA TECNOLOGIA: Embora tenha apontado alguns traços positivos, o centro do documentário gira em torno de uma realidade distópica, como falei logo acima. Essa desconfiança com a tecnologia, esse medo de que algo essencial está sendo corrompido, é mais antiga do que parece, remetendo ao século XVIII e seus filósofos e artistas românticos, todos eles preocupados com a expansão da indústria, da ciência e de tudo aquilo de “anti-natural”. Esse desconforto também invadiu o século XX, como é possível observar nos escritos de maturidade de Heidegger, ou nas passagens pessimistas de Adorno, Horkheimer e Marcuse. Em outras palavras, a ideia de que a tecnologia tira nossa humanidade, corrompendo nossa “essência”, é um tema que sempre atraiu os olhares de todos, em especial aqueles nostálgicos por uma vida mais “orgânica”.
5) A PRETENSÃO INSISTENTE: A paranoia, ao menos aquela mais sociológica, não apenas mobiliza a constatação de um grande “eles” por trás dos bastidores, de um enorme complô que transforma tudo em uma grande fachada. Além dessa constatação de sistemas e estruturas, é necessário defender também a ideia de que existem pessoas iluminadas capazes de enxergar tudo ao redor, nesse caso, o próprio telespectador. Essa pretensão, mais uma vez, é clássica, nada muito de novo no cenário daquilo que poderíamos chamar de indústria cultural. O documentário basicamente é o exemplo concreto de como indivíduos não especialistas entendem o conceito de ideologia. Não importa se falam de cinema, rádio, televisão ou Facebook, existe sempre a aposta de que a maior parte das mentes lá fora são cegas e incapazes de observar as verdadeiras amarras que atravessam o mundo e seus bastidores. O espectador dos “documentários”, ao pensar que pensa, ao achar que se destaca do povo e sua ignorância de rebanho, compra o produto liberal da individualização, achando que é uma pessoa única, inédita e mais esclarecida do que todo o resto, quando, na verdade, é só mais um espectador no meio de tantos outros milhões. Uma das magias do documentário, além da sua forma que nega a própria estética de fundo, é produzir uma sensação individualizada no espectador, um sentimento de que tenho acesso a algo que ninguém tem, um conhecimento que me destaca da multidão. Em outras palavras, posso ter a legitimidade cientifica no conforto do meu sofá, embora sem ter o trabalho de invadir, de fato, o universo da ciência e seu campo complexo de pesquisas, artigos, debates e muitos outros detalhes custosos.
Autor: Thiago Pinho
Email: pinho.thiago@hotmail.com
Instagram: pinho.thiago92
REFERÊNCIA DA IMAGEM:
https://www.brasildefato.com.br/2020/09/26/artigo-o-dilema-das-redes-entre-a-humanidade-e-a-tecnologia