Primeiro... antes de qualquer mergulho mais profundo, vamos definir um pouco os parâmetros desse debate, tudo bem? Afinal, quem gosta de ser mal interpretado, não é mesmo? Vamos lá... Identitarismo não é sinônimo de pautas identitárias, como raça, gênero, classe, religião, língua, idade. Nenhum esquerdista em sã consciência, ou qualquer criatura razoável com o mínimo de bom senso, é contra a defesa de minorias e seus debates, muito menos a favor do silenciamento de suas propostas ou de seus corpos. O identitarismo é uma estrutura epistêmica, uma forma, não um conteúdo. Ele é um campo de possibilidades, um solo que organiza nossas experiências, leituras, ideias e ações, como uma espécie de pano de fundo sutil, embora intenso. Pense nele não como uma semente jogada na terra, germinando uma determinada planta, mas a própria terra embaixo dela. Ou melhor, pense em um prédio, mas não em seu interior com suas mesas, cadeiras e lâmpadas... pense nas vigas, no suporte interno que garante a solidez das paredes. Em outras palavras, é possível descobrir no mundo lá fora, ali na esquina da sua casa, feministas não-identitárias, militantes do movimento negro não-identitários, assim como debates progressistas não-identitários. Eu entendo sua reação diante dessas palavras, provavelmente uma mistura de dúvida com espanto, mas me acompanhe um pouco aqui, por favor.
Segundo... eu não sou um sociólogo conservador, por isso não espere de mim uma crítica ao caráter dos identitários. Acusações como “eles são malvados”, “gente autoritária”, “esse povo quer dominar a mídia e nossas mentes”, “esses wokes corrompem nossos preciosos valores” não passam de frases vazias na boca de algum reacionário qualquer, nada mais do que pedaços de linguagem impensáveis nos limites desse ensaio. Elas não significam nada aos ouvidos de um cientista social sério. Os argumentos que circulam pelas entranhas desse texto falam apenas das consequências do dito e do feito, NÃO das motivações. Gosto de pensar nisso como uma crítica pragmática, também chamada por mim de “crítica estética”, ao invés de versões mais grosseiras que especulam sobre o caráter e os bastidores das consciências. Na prática, eu tenho certeza que todos os identitários são boas pessoas e querem apenas existir com dignidade, respeito e uma vida sem muitas frustrações e sofrimentos. Ou seja, são indivíduos comuns, normais e não monstros psicopatas racionalmente controlando cada detalhe das circunstâncias.
Terceiro... cuidado, porque o adjetivo “identitário” não é uma exclusividade da meninada do PSOL com suas bandeiras empoderantes. Ele pode também ser aplicado ao campo da direita, principalmente com sua defesa da família, do cristianismo e de valores mais clássicos. Tanto a esquerda quanto a direita identitárias existem em um mundo complexo, onde a identidade não é mais um dado, mas um processo sedento por constante afirmação, inclusive dentro das redes sociais com seu baile algorítmico. Ainda que reconheça maiores riscos no bloco dos reaças, super evidente em suas demonstrações de ódio e violência, esse ensaio é direcionado apenas à esquerda identitária (liberal).
Aqui seguem meus argumentos, completamente pelados diante de você, meu leitor. Antes de entrar pelos portões dessa fortaleza retórica, expondo seu viés de confirmação a riscos nada agradáveis, não esqueça de algo muito importante, um tipo de mensagem que sempre carrego comigo em minhas viagens literárias: cada pedaço de argumento é apenas uma matéria de teste dentro de um laboratório experimental chamado ensaio. Em outras palavras, não leve muito a sério a vida, muito menos esse texto aleatório de uma pessoa aleatória em um planeta aleatório. Apenas mergulhe de cabeça sem medo de molhar suas roupas... apenas venha comigo!!!
CRITÉRIO ESSENCIALIZANTE: Nesse horizonte identitário, identidades deixam de ser simples recortes ou ferramentas temporárias e se transformam em verdadeiras essências, quase sempre substâncias nas profundezas de indivíduos em busca de emancipação. Os identitários levam muito a sério seus pacotes linguísticos, essencializando tudo pelo caminho. Castelos de areia se transformam em construções de titânio revestidas de arame e cerca elétrica, cercados por um fosso repleto de tubarões e explosivos nas paredes. Quando identitários do movimento negro falam de negritude, observem com calma a forma como o conceito aparece em suas falas. Ele é visto como um elo transcendente que conecta todos os negros a um lugar místico chamado África, ao invés de uma ferramenta provisória e simplificada. Ou seja, negro não seria apenas um termo temporário em tempos de racismo, um tipo de arma histórica e necessária, mas algo profundo, substancial, um tipo de irmandade que transcende os limites do próprio tempo. Da mesma forma com feministas identitárias, categorias de gênero se transformam em essências que explicam tudo pelo caminho e não apenas uma ferramenta metodológica e política provisórias. Em outras palavras, indivíduos começam a acreditar que SÃO negros, gays, mulheres, brasileiros, nordestinos, autistas, católicos, gordos, latino-americanos, cis, trans, pessoas com nanismo, cadeirantes, surdos, albinos, idosos. Categorias instrumentais, como essas descritas por mim, perdem a aura de contingência e se transformam em pedras metafísicas, essenciais, verdadeiras substancias nas profundezas de algum sujeito empoderado. Eu começo a perceber minhas categorias identitárias não como uma arma usada por mim em momentos de necessidade, armas que podem ser substituídas quando for preciso, mas algo além, algo profundo, algo sólido.
CRITÉRIO PRIVATIZANTE: Abra a janela da sua casa, olhe lá fora... o que você vê? Eu vou começar... eu vejo um mundo dividido em cavernas identitárias, atravessados por infinitos sistemas de dominação, todos com claras restrições de entrada, a não ser que um convite conveniente seja feito com antecedência. Isso não é novidade, porque esse é o perfil da nossa democracia liberal, pensada aqui como um grande condomínio fechado, com cada criatura em seus espaços confortáveis e protegidos, sem qualquer interferência do vizinho. Nessa versão de democracia privatizante, eu tenho meu deus e você tem o seu, eu tenho meus valores e você tem os seus, eu tenho minha verdade e você tem a sua, eu tenho meu modelo de família e você também tem o seu e assim por diante ao infinito. A esfera pública é esvaziada de debates, já que o objetivo é apenas preservar a autonomia do indivíduo e todas as suas escolhas e modos de existir. Por algum motivo ainda desconhecido por mim, muitos chamam isso de diversidade, embora, na prática, é só mais uma versão do capitalismo contemporâneo em uma esteira absoluta de privatizações, da economia até a cultura. A direita privatiza o campo econômico, como você sempre aprendeu nas aulas de sociologia, reduzindo o estado enquanto instância coletiva em nome da liberdade dos agentes, mas a esquerda (identitária) também privatiza... ela privatiza o campo cultural. Sem dúvida, eu não quero insinuar que existe algum modelo epistêmico (ético ou estético) sólido e confiável no mundo disposto a substituir as privatizações lá fora... não é esse meu ponto, afinal não sou conservador. O reconhecimento da não existência de critérios sólidos, objetivos, universais, místicos e religiosos carrega riscos graves, mesmo que eles, de fato, não existam. O que é debatido nesse ensaio não é o estatuto ontológico (são reais ou não) ou epistêmico (são verdadeiros ou não) desses valores sólidos ou coletivos, mas a necessidade em torno de suas presenças, assim como os efeitos colaterais quando deixam de existir. Resumindo... mesmo que o mundo seja, de fato, relativo e apenas um produto de infinitas experiências privadas em uma enorme espiral de diversidade, ainda assim custos brotam dessa suposta revelação.
CRITÉRIO MORAL: O campo identitário se transforma em um palco de acusações morais, simples trocas de farpa e cutucadas maliciosas, numa mistura de ódio, medo e um toque de limão. Você sabe exatamente onde quero chegar... Frases como: “homem não presta”, “brancos são escrotos”, “europeus são desprezíveis”, começam a fazer parte do cenário acadêmico e político, embora não existe aqui nem sequer um cheiro distante de ciência, muito menos a social. O feminismo, por exemplo, sempre seguiu por análises estruturais, nunca de um jeito moralizante. Da mesma forma que um marxista não analisa o caráter do burguês (se ele é bom ou mau, gosta de pobre ou não), a feminista observa circuitos estruturais, a maneira como a sociedade se organiza dentro de algo semelhante a um jogo, ou seja, um espaço com certas regras e expectativas. Quando uma filósofa negra como Patricia Collins resgata o conceito de privilegio branco em seus textos e palestras, ela não tem no bolso nenhum insulto direcionado a branquitude, ela não os chama de egoístas, desprezíveis... não tem nada disso. O racismo faz parte das estruturas, não necessariamente de desvios de caráter individuais. Os identitários distorcem pesquisas complexas e importantes e transformam todas em armas de ataque ou defesa, quase sempre como uma forma de vingança diante de experiências traumáticas. Por isso, ao escutar “críticas morais” de algum identitário, lembre: isso não é sociologia, isso não é ciência, isso não é nem mesmo um pedaço retórico digerível, mas apenas uma instrumentalização política e emotiva de pesquisas complexas. Não existe nada mais anti-feminista do que uma feminista identitária.
CRITÉRIO PSICOLÓGICO: Por conta do seu nível de adesão a certas ideias, tudo isso acompanhado de um investimento emocional astronômico, é quase impossível bater um papo com esse tipo de esquerda. Não sei se você já tentou, nem mesmo sei se teve coragem, mas não é tão simples quanto parece. Depois de algumas poucas trocas de palavras, é possível identificar os contornos desse cenário retórico. Não é bem um debate, é uma guerra!!!! Críticas são interpretadas automaticamente como ataques pessoais, insultos na beira da blasfêmia, como se fossem bombas lançadas nas paredes sólidas de alguma casa aleatória. Como consequência do primeiro tópico (essencialismo), conceitos deixam de ser conceitos, da mesma forma que teorias não são mais teorias, transformando a si mesmos em cobertores existenciais, quentinhos e aconchegantes. Sem dúvida, os identitários não fazem isso por maldade, mas por necessidade. Em um mundo complexo, indefinido, e até mesmo fluído, o que eles fazem não é apenas previsível, como até recomendável. De qualquer forma, apesar do ganho psicológico e até social do identitarismo, as consequências a longo prazo são preocupantes, seja no campo político ou científico. Os efeitos obscuros são mais do que visíveis, são escancarados, são perigosos. O que é o espaço democrático de debates, e o próprio campo de pesquisas, em uma atmosfera tão sensível, onde uma palavra causa angústias indescritíveis, onde um verbo é um gatilho de ansiedade ou uma imagem um convite ao desespero? Em outras palavras, como construir uma casa retórica em um campo minado?
CRITÉRIO ECONÔMICO: a esquerda identitária é absorvida pelo capitalismo com facilidade, muitas vezes sem qualquer tipo de mudança estrutural no horizonte. Propagandas de hamburguer, sapato, sabonete, carro, filmes, séries e todos os demais ramos da árvore mercadológica parecem ter incorporado as premissas identitárias, criando o que chamei de um novo tipo de capital, uma espécie de híbrido bourdiesiano: o capital identitário. Quanto mais se tem, mais se vende, seja esse “vender” um hamburguer, uma imagem ou até mesmo uma ideia. Todos reconhecem “o valor de mercado” dessa nova moeda. Práticas como o uso do pronome neutro, e a própria obsessão pelo campo linguístico acima de qualquer coisa, comunicam o posicionamento identitário do falante, mesmo que não transforme tanto a realidade ao redor. Por exemplo, embora seja impossível neutralizar o português, ainda assim palestrantes insistem no clássico “Bom dia e Boa noite a todes” no começo e no fim de suas falas, numa espécie de “luta por reconhecimento” (Honneth). Mesmo sendo quase inútil, já que o gesto neutralizador é apenas aplicado nos segundos iniciais e finais de uma longa palestra, conversa ou aula, ele alimenta a fome contemporânea por autoafirmação em um mundo complexo, desencantado e frágil. A postura identitária sempre fala mais sobre mim mesma do que qualquer outra coisa, sempre fala mais sobre como eu quero ser visto e reconhecido em uma certa arena simbólica. Em um universo fluido, múltiplo e instagramável, a identidade não é um dado, mas um processo constante, diário. É preciso sempre deixar claro quem se é, por isso todo capital é indispensável nessa jornada infinita por autoafirmação, até mesmo um “todes”. Da mesma forma que a reciclagem feita na minha casa não tem qualquer impacto numa escala planetária, nem mesmo um risco na superfície do capitalismo com sua matriz produtiva esquizofrênica, eu ganho pelo menos um selo identitário quando caminho pelos becos algorítmicos das redes sociais, eu comunico quem eu sou. No fundo, lá no fundo, tudo gira em torno da única instituição ainda viva no mundo contemporâneo: O EU SOBERANO.
CRITÉRIO EPISTÊMICO: Nesse universo identitário, a experiência é erguida como o critério mais importante em debates. Sem dúvida, é ótimo ter pessoas diferentes com experiências diferentes, mas corpos diversos não significam uma mudança tão profunda assim. Por exemplo, não significa a existência de múltiplas estruturas epistêmicas. A epistemologia não é conhecimento, mas as suas condições de possibilidade, seus alicerces, seus bastidores. Em outras palavras, construir uma ementa com pessoas trans, negros, mulheres, latinos, não significa necessariamente uma mudança epistêmica, já que todas essas figuras podem ser apenas pós-estruturalistas disfarçados, reproduzindo o mesmo construcionismo social de sempre, sem nada de novo ou desafiador. Identidades não devem ser a meta absoluta em circuitos políticos, muito menos científicos, por mais importantes que sejam. Identidades são ingredientes, nada mais, nada menos. Não são uma linha de chegada, mas apenas um ponto de partida.
Como disse no começo, é preciso ter muito cuidado quando criticamos a esquerda identitária (liberal), porque a meta não é uma crítica das suas pautas, muito menos de suas histórias e corpos. Além disso, observem os seis argumentos costurados nesse ensaio... eles não envolvem o caráter dos envolvidos, mas apenas as consequências de suas ações e falas. Eu não tenho dúvida do quanto os identitários acreditam em suas ideias, assim como dependem delas em suas vidas cotidianas. O objetivo do texto não é destruir o identitarismo, já que ele é útil em muitos níveis, e às vezes a única coisa significativa na vida de milhões lá fora, um tipo de matriz importante que organiza seus sofrimentos e sonhos. O propósito desse ensaio foi apenas reconhecer possíveis efeitos colaterais, apenas isso...
Texto um tanto confuso, cheio de dedos pra falar a verdade , foram tantos floreios, justificativas , receios até chegar à crítica , ao que realmente interessa. Entendo tamanho cuidado , pois cancelamento, escrachos , perseguição , ameaças e todo tipo de perseguição , punição vem acontecendo aos que ousam criticar essa política identitária. Afinal é uma mercadoria rendosa, o mercado é competitivo e ganha quem lacra mais .Um texto como esse deixa bem claro que o contraditório não tem espaço, ser afirmativo dessa agenda é uma ordem. Porém nas entrelinhas muito foi entregue , e acrescentou ,com ressalvas , algum conhecimento sobre identitarismo num viés à esquerda progressista. Parabéns!
Gostei do texto Professor, nos traz uma visão mais ampla e complexa do identitarismo, não julgando e nem condenando as diferentes direções e posições políticas sobre a questão! Mostra que não importa o lado que o individuo se identifique politicamente, é possível a construção através do identitarismo individual ou coletivo sobe uma determinada pauta moral ou não, isso pode depender de experiências vividas ou adquiridas em algum momento por uma escolha pessoal!
Excelente texto professor!