Recentemente, o professor da USP Wladimir Safatle deu uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo afirmando que “a extrema direita é a única força real no Brasil”, indicando que a esquerda “morreu” como movimento ideológico. No recém lançado livro “Alfabeto das Colisões”, ele aponta que os extremistas possuem “coesão ideológica e capacidade de ruptura”, avaliando a grande capilaridade dos políticos desse espectro político, alertando ainda que a vitória de Lula foi apenas “um respiro”. Safatle é um respeitado estudioso da filosofia política e sua teoria gerou uma série de reações de outros teóricos, intelectuais, e jornalistas que consideram que há exagero nesse “falecimento” e que existe força na esquerda sim. Estou muito longe de ser um especialista ou avaliador desse assunto, nem jamais me filiei a qualquer agremiação, mas dá pra utilizar alguns exemplos, com emissões de opinião e outras tentativas de argumentação que sustentam que as conclusões de Safatle podem estar corretas.
A chamada “esquerda” compreende grupos ideológicos que apresentam como pautas a justiça social, igualdade de oportunidades, soberania popular e serviços públicos eficientes. Porém, há muitas pluralidades e frações que elencam defesas mais especificas como sustentabilidade ecológica, direitos isonômicos de gênero, combate ao racismo e reforma agrária ampla. Nesse caso, ocorrem subdivisões (social-democracia, liberalismo progressista, socialismo, trabalhismo, etc.) que defendem vias diversas para o desenvolvimento da economia. Enquanto alguns defendem um Estado forte, outros consideram que ele deve ser reformista – mitigando as mazelas dos mais desfavorecidos – e outros pleiteiam uma revolução proletária. Com isso, muitos desses campos da “esquerda” podem divergir nos caminhos que as políticas de ação devem ser implementadas. E muitas vezes se conflagram.
Já a “direita” preocupa-se com a liberdade econômica, leis de mercado, privatizações, e um Estado menor e com responsabilidades pontuais (educação, saúde e segurança pública), o que os deixa ligados quase que integralmente ao liberalismo econômico. Agora, nos últimos anos, valores morais e defesa de pautas religiosas tem nutrido parcelas conservadoras da sociedade a alimentar a ideias dessa “direita”. E isso se confirma no Congresso Nacional e boa parte da Assembleias Legislativas: eleição de políticos que adotam posturas firmes contra direitos fundamentais que a “esquerda” defende. Se cresce a cada pleito eleitoral as bancadas temáticas (evangélica, segurança pública, ruralista), o demonstrativo de que estão mais organizadas e coesas ensejam as ideias de Safatle. Tanto que a chamada "direita moderada" vem sucumbindo cada vez mais e aceitando se dissolver no espectro de uma "direita" mais extremista, pois importa mais a "guerra contra a esquerda comunista".
Muitos outros acontecimentos dão margem a essa configuração organizacional dessa extrema direita. Lula foi eleito “por milímetros”, cerca de dois milhões de votos de diferença para Jair Bolsonaro – quase nada em termos de Brasil. Com isso, foi preciso um arco de alianças muito amplo para derrotar essas forças extremistas. Desde a posse, vemos problemas de comunicação, articulação política, e assessoria. Enquanto isso, O presidente da Câmara Arthur Lyra foi reeleito com quase 90% dos votos dos parlamentares, o que lhe dá um grande subsídio e força de atuação para cobrar do governo emendas, cargos, e ministérios. Isso esmorece muitos programas que o governo gostaria de implementar, pois carece de força política. Enquanto isso, os partidos mais extremistas conquistam espaços de atuação, como as comissões temáticas da Câmara Federal; criam movimentos que impulsionam o casamento entre religião e política; apresentam nomes que figuram nas lideranças de pesquisas para prefeituras nas eleições de outubro; avançam em projetos repressores de segurança pública.
Nesse quesito, a “esquerda” não apresenta nada consistente. Apesar de índices de violência estarem em redução, a sensação nas ruas mostra o contrário. Facções coordenam cada vez mais territórios e não há nenhum combate mais efetivo, a não ser policiamento ostensivo em operações sangrentas. Mesmo questionáveis, há uma política em curso idealizada pelos governantes que se encaixam nessa direita mais extremada (ou “direita radical” ou ainda “nova direita”). Sem falar que parcelas da população vem apresentando desconfianças da grande mídia há um tempo e passam a acompanhar canais apresentados por youtubers que pertencem a esse campo “direitista”. Esses canais muitas vezes torna-se o jornal de muita gente, com audiências maiores que muitos veículos de comunicação que contam com jornalistas experientes, apuração da informação, checagem de notícias falsas, e tudo o mais. Quando esses blogueiros e influenciadores conseguem reunir milhões de seguidores que confirmam um sistema de pensamento em comum, configura assim uma força expressiva. Se reunirmos vários canais de “esquerda” e somarmos os seguidores, não chegam a números que dois ou três desses “direitistas” arregimentam.
Pra confirmar os presságios de Safatle, muitos pensadores da esquerda adotam abordagens equivocadas na sua luta diária contra as ideias dessa “direita”. Em um post publicado em uma rede social, o ex-deputado Jean Wyllys contou um caso que ocorreu quando pegou um táxi. Ao adentrar o veículo, o motorista estava ouvindo uma rádio gospel em volume alto. Wyllys então teria solicitado baixar o som, porém, mostrou que o incomodo seria com a inclinação religiosa do condutor. Travou uma pequena discussão tentando “ensinar” a ele que a audição daquele áudio não deveria ser imposto. O problema dessa atitude é que uma “ação corretiva” dessas não demove ninguém de sua condição doutrinária, ainda mais no tempo de uma curta viagem. E pela postagem, Wyllys atribui a postura arrogante do taxista à sua religiosidade, deixando claro seu incomodo com a tentativa de proselitismo do motorista – que talvez apenas quisesse demonstrar que segue uma fé que o satisfaz. Com isso, dá subsídio a extremistas que podem acusá-lo de intolerância e pode aproximar esse profissional ainda mais de irmãos de fé que podem já estar “contaminados” por um viés mais extremado que se aproxima dessa política de uma direita mais radical. Essa ação de Wyllys pode dar subsídio às teorias de Safatle de que a esquerda não se unifica na tentativa de um modo abrangente de cativar um público maior. Pra piorar, esse condutor pode ser identificado e acolhido por lideranças religiosas que compactuam com pautas políticas que intensificam valores morais.
Claro que pode haver pontos no livro de Safatle que podem ser discordantes, porém, no âmbito geral, não há como desconsiderar que um lado está muito mais municiado de agendas sólidas, com unidade global, elegendo políticos histriônicos em defesa de uma "liberdade individual do cidadão" que muitas vezes se mostra paradoxal, no entanto, sem essa percepção por parte do eleitor, enquanto o outro bate cabeça nas prioridades de debates (utilização de linguagem neutra, reformas sociais, reestatização, transferência de renda, etc.). Se a “esquerda” está morrendo, não sei. Mas se ela tiver falecido, não fui pro enterro...
FONTE:
Essa afirmação do Safatle que a Esquerda está morta está muito atrelada à ideia da falência da democracia republicana burguesa. O estado democrático de direito não deu as melhorias prometidas ao povo, e quem está capturando a revolta é a extrema direita. A extrema direita se transformou revolucionária, a esquerda, legalista. Nesse caso ele tem razão sim: a esquerda está morta, pelo menos a esquerda hegemônica, que não vê nenhum horizonte além de melhorias pontuais dentro da perspectiva de conciliação de classes. A esquerda só pode ressuscitar quando se radicalizar como a extrema direita.