“A política se baseia no fato da pluralidade humana [...] política diz respeito à coexistência e associação de homens diferentes [...] o significado da política é a liberdade” (Hannah Arendt).[1]
Considero extremismo toda teoria, pensamento ou ação que nega o diálogo, a tolerância e a coexistência pacífica. Isso vale para qualquer espectro ideológico. Neste texto, focalizarei na tipologia da extrema direita brasileira. Genericamente, divido-a em dois grupos: lavajatista e bolsolavista. Ao final, explico aos leitores as lacunas existentes.
O lavajatismo ganhou força a partir de 2014, com os desdobramentos da chamada “Jornadas de Junho” e sua forte crítica ao establishment brasileiro, a saber, instituições e elites políticas. Todo tipo de apelo difuso acendeu-se com o gatilho do aumento da tarifa de transporte coletivo. A partir daí, embora por outros motivos também, ascendeu uma mega operação da Polícia Federal junto a uma força tarefa do Ministério Público, juízes, procuradores e diversos outros membros do próprio judiciário. Foi descoberto um colossal esquema de corrupção que envolveu a Petrobras, políticos e partidos, empreiteiros e empresas de diversos ramos no Brasil e outros países.
Mas a despeito da descoberta da mega e surpreendente engenharia de corrupção no Brasil, muito se fez justiça com os olhos bem abertos. A caça aos vampiros em Pindorama foi à revelia da Constituição, de códigos de ética, código penal e processo penal. Muitas perseguições foram seletivas. Os “justiceiros” receberam apoio de parte expressiva da imprensa, de políticos e de um extrato fervoroso da sociedade, sedentos pela crucificação dos "traidores da pátria".
Como se sabe, a Vazajato, através do Intercept Brasil, revelou acordos obscuros que envolveram atores do judiciário, capitaneados pelo ex Juiz Sérgio Moro. Uma operação que nunca se mostrou neutra e imparcial. Ações espetacularizadas, vazamento seletivo de documentos e informações sigilosas, completo desrespeito à presunção de inocência, desvirtuamento do uso da prisão provisória, explosão de delatores suspeitos. Ao fim e ao cabo, nunca houve a verdadeira face de Têmis.
“A maneira de se investigar, acusar e punir, na Lava Jato, até aqui, pode ser adjetivada, com toda reverência ao diabólico Santo Ofício, como medieval. Como num Tribunal Quinhentista estão sendo cumpridas formas e fórmulas, em ritos vazios de conteúdo porque destinados ao impossível convencimento de um Juiz que é um Juiz suspeito, que quer condenar porque quer condenar.”[2]
A Lava Jato foi mais do que uma operação contra a corrupção e lavagem de dinheiro: virou uma bandeira política avassaladora. Seu núcleo interno e simpatizantes difusos enxergavam, e ainda enxergam, no movimento uma oportunidade de moralizar a política. Colonizá-la. Num nível geral, rebaixá-la e degradá-la. O ativismo judicial, de caráter paradoxalmente político, com essência antipolítica, fragilizou o Direito e as normas para um suposto projeto de poder esperançoso. Qual? Acabar com a corrupção, de políticos e empresários, e colocar o Brasil nos eixos, em algum tipo de modernidade (seja lá o que isso significa) que teria como referência alguns países desenvolvidos.
Ao estremecer as instituições passando por cima dos direitos individuais, abriu-se todo tipo de canais de exceção, criando instabilidades jurídicas de ponta a ponta e um Estado policialesco. Foi direta ou indiretamente responsável por prejudicar setores da economia do país, por criar uma assombrosa aura antipolítica e abrir espaço à outras extremas direitas brasileiras, que eram mais ou menos contidas pela centro-direita e direita democrática.
De maneira geral, o espírito lavajatista não é contrário à existência das instituições modernas. Apesar de flertarem diversas vezes contra os direitos individuais, de criminosos e acusados - desprezando o sistema penal acusatório e aproximando-se do modelo penal inquisitivo - e de criar enorme fragilidade à República e à divisão de Poderes, não são contrários à existência do Estado de Direito. Transitam entre o autoritarismo e um liberalismo gourmet. Estranho, né?
Eles não são adeptos à anti-ciência ou favoráveis ao negacionismo histórico. No mínimo, com boa vontade, essa turma e seus múltiplos simpatizantes são semi-iluministas, pois apostam numa mudança, diga-se forçada, olhando para frente, com práticas obscurantistas do passado. Muitos de seus adeptos são contrários ao aborto, liberalização de algumas drogas, apoiadores do Escola Sem Partido e do porte de armas. E se dizem combatentes do esquerdismo e socialismo.
O bolsolavismo surfou na onda do esgarçamento e fragilização das instituições, acelerada principalmente por causa dos desdobramentos da Operação Lava Jato e pela insatisfação de amplas camadas da sociedade ao status quo tupiniquim. Foi aberto um caminho à ascensão do bolsolavismo na esfera pública e no sistema político. Eles ganharam voz. A porta foi escancarada.
O olavismo tem um passado. O astrólogo, de cunho esóterico islamista, e autointitulado filósofo Olavo de Carvalho já realizava seus cursos de filosofia online, de caráter ofensivo e extremista, na internet há alguns anos. Ele é acusado de deturpar a filosofia e a literatura universal. Seus cursos atingiram diferentes classes sociais avessos a tudo que está aí. Carregam ressentimentos com a política, cultura e os valores progressistas.
A internet foi um meio extraordinário de levar as suas ideias virulentas, com rara polidez, Brasil afora. O seu canal no Youtube teve um papel fundamental. E outras plataformas de cursos também o ajudaram a alavancar o curso. Uma figura muito atuante nas redes sociais e adepto ao politicamente incorreto. Publicou também vários livros. Alguns deles, com relativo sucesso a uma fração órfã da direita brasileira, que inclui fundamentalistas cristãos, grupos militaristas, neoconservadores e neomonarquistas. Todos de caráter iliberal e antidemocrático. Desde 2019, muitos de seus alunos e adeptos, incluindo Jair Bolsonaro e seus filhos, ocupam cargos importantes no governo federal, compondo a chamada ala ideológica.
Nos últimos anos, antes de alcançar o posto de presidente, Bolsonaro ganhou espaço na mídia como figura caricata, por ser contrário a tudo que beira a polidez, bom senso, tolerância. Recentemente, Monica Yozzi, uma ex integrante do Programa CQC, na Band, que deu voz ao ex deputado capitão reformado, fez mea culpa e disse:
“Ele engloba todos os discursos de ódio em uma pessoa só” [...] Se você for na Alemanha, você não vai ter espaço na tevê para pessoas que relativizam o holocausto. Eu acho que a gente precisa começar a ter, em relação ao discurso de ódio, esse tipo de intolerância”. [3]
Quem adere ao olavismo e ao bolsonarismo é antimoderno e anti-iluminista. Sua visão de mundo extrapola a realidade brasileira e seus problemas internos. Utilizam o discurso de uma certa democracia plebiscitária permanente - como qualquer discurso populista e autoritário hoje em dia - mas tem aversão à plebe. Desprezam o diálogo; ojerizam a diversidade sexual, política, moral, cultural; rejeitam o pluralismo; são iliberais; não são favoráveis ao Estado de Direito, a divisão de poderes e aos direitos humanos. Bradam por um líder forte, viril, capaz de usar a espada contra toda a oposição. O adversário é visto sempre como um inimigo.
Muitos bolsolavistas anseiam pelo retorno ao um certo medievalismo bizarro. Acreditam numa época de ouro, das fantasias dos conflitos medievais e suas cidadelas, com a virilidade máscula e bélica dos homens numa sociedade militarizada.
De acordo com historiador, especialista em história medieval, Paulo Pachá:
“[...] Essa visão sobre as Cruzadas dá um tom de se associar a uma ideia de cristianismo, não mais a um cristianismo medieval, mas a um cristianismo brasileiro, onde você vai ter católicos conservadores e evangélicos no mesmo barco. E aí a pauta moral, dos costumes, tem muita força dentro disso.” [4]
E mais:
“Para eles, na Idade Média os homens eram viris, eram efetivamente masculinos, poderosos, podiam defender a sociedade. E as mulheres eram, entre muitas aspas, “mulheres de verdade”, mulheres que eram submissas aos homens, que estavam preocupadas em cuidar da família. Isso reaparece nesses memes." [5]
Eles ainda são anticientíficistas e negacionistas; sensíveis também às inúmeras teorias da conspiração nacional e global. Tal como os lavajistas, também tentam combater o esquerdismo - que inclui liberais, socialistas e social-democratas - de uma forma bem mais truculenta e delirante.
Sua visão de mundo é deveras moralizante: sonham em resgatar a hegemonia da cristandade ocidental em diversas áreas, e capturar a política pela ascensão de um chefe religioso poderoso. Para o bolsolavismo, a segurança e a preponderância de valores tradicionais estão acima da liberdade dos modernos. Podemos classificá-los de tradicionalistas/reacionários. Vislumbram uma completa destruição da sociedade; apostam no caos e num recomeço após uma terra arrasada.
Para o bolsolavismo, de modo geral, houve uma degeneração moral, cultural e, quizá, biológica (alas ainda mais extremas) da humanidade. Olham a realidade de forma decadente. Almejam restaurar certos valores e instituições de um passado remoto, negando os avanços conquistados pela civilização.
Leitores, muitos desses grupos se confundem. Há bolsonaristas lavajistas, lavajatistas olavistas, olavistas anti-bolsonaristas. Também há lavajistas de esquerda e outros extremos de direita. Mas o intuito do texto foi capturar o espírito de apenas duas visões de mundo, à direita, utilizando um artificio ideal, abstrato, caracterizando-os, sem, contudo, desconsiderar que no mundo concreto há mais complexidades, pois nenhuma teoria consegue explicar cabalmente a realidade.
Notas
[1] ARENDT, Hannah. A promessa da política. 7ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 2020. [2] Por Luiz Fernando Pacheco. https://www.conjur.com.br/dl/excessos-lava-jato-sim.pdf [3] https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2020/09/4872749--monica-iozzi-assume-culpa-de-dar-visibilidade-a-bolsonaro.html [4] http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/588829-deus-vult-uma-velha-expressao-na-boca-da-extrema-direita [5] http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/588829-deus-vult-uma-velha-expressao-na-boca-da-extrema-direita
Link da imagem: https://brasil.elpais.com/brasil/2019-12-28/do-bolsonarismo-ao-integralismo-como-a-extrema-direita-se-organiza-na-internet.html
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