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A NORMALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA À INFÂNCIA

Atualizado: 4 de nov.


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“Ô boa noite pra quem é de boa noite,

Ô bom dia pra quem é de bom dia.”

 


Soteroleitores, faz tempo que eu não apareço aqui com os meus textos, nem da série Educação, nem da série Escrevivências. Espero que vcs estejam acompanhando as SoteroLives, todo último sábado do mês, desde abril, pelo Instagram @Soteroprosa.

 

Para me manter mais constante, a partir de agora, eu vou fazer as Escrevivências misturadas com o tema Educação. “A gente faz o que dá”.🤣

 

Neste momento, eu senti a necessidade de voltar aqui pra vocês, nessas minhas escrevivências, provocada pela fala de um dos palestrantes em um workshop internacional do qual participei na faculdade semana passada.

 

Ele estava falando sobre a questão das tecnologias, como usá-las a favor da educação; sobre como o rádio, quando chegou, e também a televisão e novas tecnologias, foram e são mal vistos e condenados por educadores e outros setores. Este lugar de desconforto hoje é ocupado pela IA (Inteligência Artificial). Ele argumentou que precisamos entender que esta ferramenta veio pra ficar, e que precisamos saber usar essas tecnologias, o celular, a IA e outras que surgirem, a nosso favor na educação.

 

Até aí, beleza.

 

Estava indo tudo muito bem, até que ele deu uma pisada na bola, pelo menos a meu ver. Ele lançou aquela velha história do porque na minha época...: porque só da forma de educar antigamente que os filhos respeitam aos pais; hoje os pais não sabem mais educar; eu apanhei e não morri, e não tive nada, e não ficamos com sequelas. E foi pelo caminho de como tais “métodos” são importante para formação humana. Não era o centro de sua palestra, mas ele o falou enfaticamente.

 

Ele disse literalmente que sem bater não se educa bem. E aí confesso que fiquei surpresa, incomodada, e indignada. Primeiro, por esta fala estar vindo de um educador, em um encontro de educadores, para educadores. Segundo, porque, principalmente em um evento tão importante, melhor evitar assuntos dos quais não temos propriedade, correndo o risco de errarmos feio. Ainda mais num espaço acadêmico que preza tanto pela comprovação científica e pelos referenciais teóricos “clássicos”, nessa tradicional estrutura colonial que ainda mantemos em nossa educação. Terceiro por ser um desserviço à Infância e às nossas crianças. Todas.

 

Sua fala foi também uma crítica, como se os pais de hoje não soubessem educar seus filhos, ao contrário dos “da sua época”. Me remeteu ao termo ignorante e discriminatório do pai/mãe “Nutella”, onde confundem completamente educação permissiva com educação respeitosa.

 

Não houve ciência nestas falas, apesar de tantos avanços nos conhecimentos do desenvolvimento neural, psicológico, educacional, emocional infantil, facilmente disponíveis.

 

Todos os outros temas precisam se basear na Ciência, mas se tratando de “filhos” todos são especialistas, profissionais da Educação ou não, usando apenas sua experiência pessoal, geralmente engessada pela perpetuação do modo sociocultural tradicional de se tratar as crianças.

 

E isso me entristece muito, porque é, de forma muito clara, a evidência de como a sociedade normatizou a violência à infância.

 

A gente já vem falando disso nos últimos textos sobre educação, e como é evidente, se você estuda sobre o assunto, sobre o neurodesenvolvimento humano, que ensinar a criança com violência, batendo, agredindo, punindo, sem controle emocional do cuidador, é assim que a criança aprenderá a resolver seus problemas, além de não aprender controle emocional e de se ver como um problema.

 

Traduzindo a violência parental: “Você está sendo um problema. Você não está se comportando como eu falei pra você se comportar ou como eu quero que você se comporte, então eu vou te bater, eu vou te ameaçar.”

 

Para uma criança não há diferença entre bater forte ou bater leve; o que fica marcado é a intenção, é a emoção, é a raiva que você está sentindo quando a repreende, dizendo sem palavras o quanto ela é inadequada e errada. E que ela precisa acertar para você se sentir melhor e mais controlado. Agredir/punir uma criança fala mais sobre VOCÊ (e o seu despreparo e descontrole emocional) do que sobre a criança.

 

E no dia seguinte está tudo normal de novo, e “nos amamos”: “cadê o beijinho do papai?”, “cadê o abraço da mamãe?”, “Não me ama?! Que coisa feia dizer que não me ama!” Parece ser obrigação do filho amar o pai e a mãe, mesmo que eles sejam extremamente violentos ou ausentes em sua educação. Ser grato pela vida gerada? Ok. Mas amar?! Às vezes é pedir demais...

 

Mas a violência é normalizada. Ainda mais quando o pai e a mãe falam que “faço isso porque te amo”. A criança se sente amedrontada, num mundo sem coerência, e começa a aprender que pode ser assim, que ela não precisa cuidar dos seus, que ela apenas pode dizer que ama, apesar de seus atos dizerem o contrário, porque assim ela foi criada.

 

Já é comprovado que a criança aprende mais observando como você faz do que ouvindo o que você diz. Então, sua criança vai aprender a te respeitar, e aos outros, não através de tapas ou de castigos; ela vai aprender observando como você respeita as outras pessoas e a ela.

 

Tudo que acontece com a criança, principalmente nas duas primeiras infâncias, está contribuindo para a formação do caráter, da personalidade dela enquanto pessoa.

 

Então, quando uma criança amada com violência fica adulta, pensa: “por que não fazer o mesmo? Meu pai e minha mãe fizeram isso e eles sempre me afirmaram que me amam. Eu sou cobrado a amá-los pela sociedade, a qual sempre me ensinou que amor maior é o de mãe (mesmo que esta mãe só me faça mal). Afinal que filho é esse que não ama pai e mãe?”

 

Logo, se o amor pode vir agregado à violência, e esse maior vínculo - com a mãe, com o pai, com as pessoas que te criam e cuidam durante sua infância – pode vir agregado de violência, de soluções violentas, de cárcere (“vá para o seu quarto! Está proibido de sair até eu mandar!”), de esconder forçosamente as emoções (“engula o choro se não vai apanhar mais!”, de ameaças (“quando chegar em casa você vai se ver comigo”, “a chinela vai cantar”), ou de práticas de violências físicas, mesmo as mais leves… Uma “Educação” sempre em tons de repreensão, imbuídos de sentimentos negativas como raiva, desaprovação, vergonha, descontrole emocional... Por que este também não pode ser meu modo de amar e/ou interagir com outras pessoas? Com meus filhos; minha companheira; o vizinho; um desafeto no trânsito. Agredi-los “é normal”.

 

Através de punições, castigos e uma educação violenta, ensina-se que as coisas se resolvem com violência. Não se Educa.

 

Há Educação quando se ensina pelo medo, pela ameaça, pela agressão física e violência psicológica? Isso é realmente Educação?

 

E não é que esses pais e mães fazem isso simplesmente porque são malvados. Alguns são. Mas, em sua grande maioria, foram moldados pela cultura a serem assim, a achar que só assim funciona e aplicar. E repetem este discurso de que “comigo funcionou”. Mesmo que não tenha dado tão certo...

 

Porque, se passar pela sua cabeça que poderia ter sido diferente, como ficaria? Como fica o psicológico dessa pessoa ao saber que ela poderia ter sido criada com mais amor, com mais respeito? Que ela poderia aprender tudo que sabe hoje sem ter essas marcas de violência nas relações com seus cuidadores?

 

Isso é um ponto a se pensar.

 

No mais, é perpetuação e normalização da violência na infância.

 

O palestrante também falou que não ficamos com marcas, com sequelas. Será que essas marcas e essas sequelas não se refletem exatamente nos sentimentos que se manifestam quando você ouve o choro de uma criança e não consegue lidar com ele? Por que a sua criança - você, quando era um infante - não teve o direito a chorar? A gasta sua energia própria da infância ao descobrir o mundo?

 

É proibido chorar, é irritante (para os outros) o chorar da criança, botar suas emoções pra fora, fazer o que seu desenvolvimento biológico está pronto para fazer para lhe proteger. Uma criança que não se comporta como um adulto, é chamada a todo momento a ficar quieta, a não gastar a energia natural de seu corpo, e se comportar como NATURALMENTE deve se comportar.

 

Quando seu filho está fazendo algo próprio de criança, a sociedade está olhando, está julgando,  repreendendo, está “falando com os olhos” a famosa frase “quem é a mãe desse menino?”. Então o pai ou a mãe se sentem obrigados a “educar” da forma como foram ensinados também, e repetir violências.

 

Por serem tais violências tão normalizadas pela sociedade - e, muitas vezes, como nessa palestra com o professor, incentivadas - ouvimos pitacos como: “isso aí é falta de surra, merece uma boa sova”, “ah, se eu fizesse metade do que ele fez, já tinha tomado uns tapas na cara e nunca mais repetia”, “porque um dia eu fiz tal coisa e minha mãe só fez olhar, e nunca mais eu repeti aquilo”. Nada de Ciência. Nem ancestral nem colonial.

 

Qualquer pessoa que veja alguém espancando um cachorro na rua vai interceder pelo cachorro. Qualquer pessoa que presencie uma violência a um idoso que não tem condição de se defender vai interceder pelo idoso.

 

Mas nós vemos pessoas adultas acometendo uma criança - duas, às vezes três vezes menor que ele - de violências físicas - e eu não vou nem falar das psicológicas e das emocionais - e ninguém pode interceder por aquela criança, apesar de quase nunca alguém achar que deve - porque “o filho é meu, eu faço como eu quiser”.

 

A criança é vista (não por Lei) como uma propriedade, não um ser a ser guiado em sua formação humana. E olhem que até outros animais, enquanto propriedades, têm mais direitos.

 

Por Lei, a criança é um ser humano que tem direitos: direito a ter uma infância livre de violências, direito a ter uma formação humana íntegra, sem confusões mentais, como o fato de a pessoa que é seu porto seguro, seu cuidador, sejam pais ou qualquer outra pessoa, ser o mesmo que está lhe infligindo dor, da qual ela quer fugir.

 

A criança se sente abandonada.

 

Se uma criança cai e se machuca, ela corre pro colo da mãe. Se uma criança se sente ameaçada, ela corre para a proteção do pai. Agora, quando é o pai e a mãe que o ameaçam, o agridem... a quem ela vai recorrer?

 

Ela sente o abandono, se sente desprotegida, confusa: “como assim o meu lugar seguro não é tão seguro?!”.

 

Imagine a confusão que isso não faz na mente de um ser humano!

 

Então, por favor, eu lhes imploro: vamos enterrar de vez esta frase “apanhei e não morri”.

 

Não é sobre se sentir culpado. É sobre não normatizar.

 

Conto com vocês!



IMAGEM: Conjur

1 comentário

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04 de nov.
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Ótimo texto!!

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