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A NOVELA TRÊS GRAÇAS, A MATERNIDADE SOLO E O INEVITÁVEL PAI IMAGINÁRIO

Personagens da nova novela Três Graças da Globo.
Personagens da nova novela Três Graças da Globo.

Toda mãe solo é assombrada. Não apenas pelas contas que precisa pagar ou pelo tempo curto que dispõe para resolver todas as demandas do filho (ou filhos). Nem somente pela total insegurança, material e afetiva, que lida todos os dias, ou pelo sofrimento por fazer tudo sozinha. Ela é assombrada pela figura do pai imaginário. Porque o pai mesmo, o real, existe, mas não na vida daquela criança que ela está criando. 

 

Me inspirei para falar desse assunto depois da estréia da novela Três Graças que está trazendo uma discussão importante sobre a geração de mães solos que impera na cultura brasileira. Na trama da TV, é apresentada a trajetória de Lígia, Gerluce e Joély, avó, mãe e filha respectivamente, unidas pela parentalidade solo. A filha engravida e a mãe se martiriza pela ideia de que mais uma geração da família irá enfrentar o peso da maternidade sozinha. Pior ainda, na fase da adolescência. O Brasil possui números alarmantes neste cenário:


“Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, 15% das famílias no país são chefiadas por mães solo. Esse número cresceu de 9 para 12 milhões de lares nos últimos 12 anos.”
“Segundo estudo coordenado pelo Hospital Moinhos de Vento, em parceria com o Ministério da Saúde, o Brasil registra cerca de mil partos por semana de meninas entre 10 e 19 anos. Só na maternidade Leila Diniz, são 500 partos mensais, sendo 20% de mães adolescentes.” (REPÓRTER, 2025)

É importante ressaltar que existem diferentes camadas da maternidade solo. Há aquela retratada na novela: a mãe solo que o pai não teve nenhuma participação afetiva, financeira ou de presença. Existe também a maternidade solo onde a ausência é picotada. Ela pode estar no financeiro, nas decisões sobre a criança, no suporte afetivo ou familiar. Existe até a mãe solo casada! Sendo assim, a maternidade solo é plural. O que as conectam é a ideia de que todas carregam um espaço da ausência paterna. E para cada espaço de ausência do pai, a criança provavelmente vai preencher com sua própria imaginação. 


Não importa o quanto as pessoas inventem que uma mãe pode ser pai e mãe ao mesmo tempo. Existe um lugar no imaginário da criança, preenchido pela mistura de influência social com absorção da indústria cultural, sobre quem seria esse pai. Falo isso com a enorme propriedade de ter sido essa criança. Carregada de imaginação, eu lidava com a presença estranha de painho e, depois, seu posterior sumiço, com a possibilidade de um dia ele virar o pai bondoso da minha vizinha Aline. Aquele que amava fazer suas vontades, falava pouco  e sempre a enchia de abraços e beijos. Somado a isso, eu via os pais de novelas e filmes, pensando que seria tão bom que painho me levasse para tomar um sorvete e me parabenizasse pelo boletim cheio de boas notas…


Outro fator que ajuda a criança a persistir com a imaginação é o fato que as mães, muitas vezes, não querem falar mal do pai ou nem gostam de falar do pai em si! Basta alguém se aproximar e dizer o nome do dito cujo para a mãe virar o rosto e fazer uma careta de mau gosto. Ela não quer lembrar daquele homem que existiu e talvez, como minha mãe, corte as fotos de família para tirar qualquer vestígio físico do homem que a abandonou com toda a carga de parentalidade. A criança percebe isso e, sendo alguém que tem pouca ou quase nenhuma informação desse pai, acaba acreditando na figura paterna que criou na própria cabeça. 


Isso não é um problema em si. A grande questão é que, enquanto ela está lidando com o pai baseado em sua imaginação (misturado aos seus desejos pessoais), a mãe é real. O tempo inteiro. A mãe dá limite, chama atenção quando a criança quer fazer algo errado e sempre diz o que não fazer. A mãe discute, conversa, reclama, repete as mesmas ordens.  A mãe é real demais para ser suportável. Com isso, acontece um fenômeno que vejo com muitas amigas minhas que são mães solos. Quando os filhos se tornam adolescentes, eles entram numa fase de embate, de conflito, e assim preferem escolher o pai imaginário do que lidar com a mãe real. Uma outra novela trouxe isso de forma muito clara. 


Na telenovela A Viagem, de 1994, a personagem Bia não tem contato com o pai há mais de 10 anos. Ela tem poucas lembranças dele, mas carrega um vazio enorme pela falta que faz. A mãe dela é muito estrita e reclama do que ela faz de errado. Com isso, a Bia sempre recorre à imaginação. Ela pensa em como seria a fisionomia do pai e sua vida com ele, achando que é melhor e mais tranquila do que lidar com a mãe. A novela deixa isso tão claro que, nos primeiros capítulos, a Bia realmente imagina o pai no rosto de outros homens. Até que o verdadeiro pai dela aparece. Sendo um típico mentiroso, ele inventa várias histórias para deixar a filha encantada. A trama desses personagens acaba se situando neste lugar: a filha pensa que encontrou o pai perfeito, melhor que a mãe, porque é baseado na sua imaginação e nas mentiras que o próprio pai diz. O personagem do pai não voltou para cuidar da filha, mas sim para cutucar a ex-mulher e fazer com que ela volte para ele. Nesse ponto, o ápice desse drama é a Bia descartar a mãe e só querer ficar com o pai.


Acredito que a nova novela Três Graças pode aproveitar sua narrativa para trazer esse traço da realidade. Uma hora ou outra, toda criança/adolescente que sofre de algum nível de ausência paterna irá se alimentar da sua imaginação para lidar com falta. O pai imaginário vai surgir e será um alento diante da dor, muitas vezes virando um escudo para lidar com a realidade concreta da mãe cansada presente na sua frente. Uma mãe real puxa emoções, afeta comportamentos e interfere na existência em várias camadas, um embate necessário para o amadurecimento humano. Um pai imaginário não trará grandes emoções, nem irá interferir na forma de ser e pensar de uma pessoa, por isso, pode se tornar um caminho mais fácil para suportar a vida. 


Para finalizar, deixo aqui um breve recado à criança que fui e às crianças que vejo nessa condição. Nenhum pai imaginário será capaz de trazer amor e paz para sua cabecinha sonhadora e cheia de desejos não satisfeitos. Amor acontece na vida, no dia a dia, na rotina maçante e nos desafios de crescer e se mostrar ao mundo. Valorize quem esteve ali contigo, nos erros ou acertos da criação. Esse corpo pulsante não desistiu de te amar e te cuidar e pode não ser tão adorável como uma imaginação, mas será a forma mais viável para suprir suas necessidades materiais, emocionais e afetivas. 


Para cada pai imaginário, saudemos, com honras, a mãe solo presente!


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