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Antígona, Creonte e o Brasil


Por Manhana*


Aos 13 anos de idade meu pai dizia que a moral se concentrava no campo da ética. Aprendi sobre ética no espaço doméstico e com minha professora de filosofia Sônia no Ensino Médio. Foram pessoas que nortearam minha reflexão sobre o assunto. A partir daí fui moldando uma postura na vida, a maneira que me comporto no mundo e diante dos outros, sendo minhas decisões e julgamentos fundamentados em princípios que cultivei durante minha trajetória, sem fazer deles verdades ou certezas, mas me pondo aberta e crítica diante dos ensinamentos que a vida me traz.


O autor Adolfo Sánchez diz que não cabe à ética formular juízos de valor sobre a prática moral de outras sociedades ou de outras épocas em nome de uma moral absoluta e universal, mas deve, antes, explicar a razão de ser desta pluralidade e das mudanças nos valores morais, isto é, deve esclarecer o fato de os homens terem recorrido a práticas morais diferentes e até opostas. Sendo assim, para ele a ética é a teoria ou ciência do comportamento moral e, portanto, habita também um campo subjetivo e simbólico.


Nessa perspectiva, a tragédia grega da personagem Antígona é uma história interessante na seara da ética. Escrita por um dos grandes intelectuais da antiguidade clássica Sófocles (495 a.c-406 a.c); nasceu e faleceu em Atenas, se tornou consagrado por escrever peças de fundo trágico que traziam em seu bojo assuntos contrastantes do cotidiano daquela época. Uma obra atemporal que provoca reflexões até os dias atuais.

Antígona, Ismênia, Polinice e Eteócles são filhos de Édipo, frutos de uma relação incestuosa de Édipo que casou com a mãe sem saber que era sua progenitora. Édipo, por descobrir seu destino trágico de ter casado com a mãe e matado o pai, segue para o exílio, e seus filhos, Polinice e Eteócles, lutam pelo poder da Cidade de Tebas. Nessa disputa insana, os dois irmãos acabam matando um ao outro, e quem assume o poder em Tebas é o tio Creonte. Ele estabelece, através de sua autoridade de Rei, que Polinice não seria enterrado de acordo com os rituais fúnebres da época, pois ele tinha lutado contra a pátria, e Eteócles deveria ser devidamente enterrado com todas as honrarias necessárias, para que o corpo do morto atingisse o paraíso dos deuses.


Creonte, não satisfeito com essa atitude autoritária e despótica, estabeleceu como lei que o indivíduo que desobedecesse tais ordens seria severamente punido, nesse caso com a pena de morte. Os dois irmãos de Antígona faleceram; não havia mais sentido em criar uma lei que desrespeitava as crenças espirituais das pessoas. Creonte tinha o poder de Tebas nas mãos, o que ele queria mais? Antígona considera uma atitude arbitrária e desrespeitosa do tio e assume o “peso” de enterrar seu irmão, Polinice, à revelia da lei que o próprio rei estabeleceu. Sua atitude é descoberta, e Antígona, levada diante do rei, confirma sua desobediência.

Destaco um trecho que considero fundamental no diálogo entre Antígona e Creonte.


Antígona: Estou nas tuas mãos. Mata-me. Que mais queres? Creonte: Eu? Nada. Tenho o que desejo. Antígona: Então, o que esperas? A mim, em tuas palavras, não me agrada nada nem jamais poderá, nem há nada que te possa causar prazer. Contudo, onde poderia procurar renome mais fulgente no que na ação de dar a meu irmão sepultura? Todos estes o aprovam, e o declarariam se o medo não lhes travasse a língua. Mas a tirania, entre muitas outras vantagens, tem o privilégio de fazer e dizer o que lhe apraz.


Antígona possui consciência de que será condenada à morte e enfrenta seu destino trágico com destemor. Como deixar um ente querido ser devorado por abutres, sem poder velar o corpo com todos os rituais sagrados e divinos? Na crença antiga, esses rituais eram importantes para que a alma do indivíduo não ficasse vagando perdida em uma espécie de limbo. Essa dimensão espiritual é o que importa para personagem. Ela compreende que não tem escolha diante de um ato de injúria do rei contra sua família. O filho de Creonte Hemon ama Antígona e tenta intervir a seu favor. Seu pai com o poder, a lei, e com extrema arrogância, assevera que jamais irá admitir essa afronta de uma mulher, mesmo que seja um pedido justo.


Não podemos esperar justiça de tiranos, correto? A lei é importante para a civilização, entretanto uma lei engessada, inflexível serve apenas para manter privilégios de determinados grupos e alimenta a tirania dos que se consideram soberanos. Antígona é condenada, e após seu fim trágico, Hemon se mata. A mãe de Hemon esposa de Creonte também se mata ao saber que o filho resolveu tirar a própria vida. O Reino de Creonte sucumbe a uma verdadeira tragédia familiar.


Como uma atitude arbitrária e inflexível pode prejudicar a vida de um povo! Nesse sentido, resgatei a personagem Antígona para pensarmos sobre o cenário político brasileiro. Quando me coloco contra o atual governo, não discordo apenas do aspecto político, invoco alguma fração do destemor de Antígona. Existe uma dimensão muito maior que minha visão de mundo abarca , e deve ser considerada intocável: a ética.


Será possível que nos tempos atuais ser radical é pensar e se posicionar contra a barbárie? Como defender um governo mergulhado em escândalos de corrupção, responsável pela liberação absurda de agrotóxicos que favorece latifundiários, que desmerece o direito dos povos indígenas na demarcação de suas terras, que desqualifica a mulher, o povo preto e os homossexuais? Um governo que colocou em risco a vida de milhares de brasileiros não assumindo a responsabilidade efetiva diante da pandemia com uma vacinação mais célere. São mais de 600 mil vidas perdidas. Quantas vidas poderiam ter sido poupadas?


A ética da vida pressupõe também uma dimensão subjetiva que atinge diretamente nossa consciência, entretanto não devemos compactuar com o que é visivelmente injusto. Ser neutro em um estado de injustiça é coadunar com o “mal”. A ação desastrosa de um governo afeta toda coletividade. Como um país não pode se sentir ultrajado regredindo para o mapa da fome? Um governo que não representa as necessidades de seu povo fere de morte a democracia e desrespeita nossa Constituição. Evoco a canção poética de Taiguara para salvaguardar nossa inteireza enquanto “nação” (ao menos no sentimento): “Ah, minha amada amortalhada das mãos do mal vou te tirar para dançar danças de outras terras e em outras línguas te acordar”...


Necessitamos com urgência trazer essa “radicalidade” da personagem Antígona para nosso cotidiano, devemos nos posicionar diante de um valor expressamente sagrado, a vida! O autor Jacques Lacan dizia: “Quem não é capaz de evocar Antígona em todo conflito que nos dilacera em nossa relação com uma lei que se apresenta em nome da comunidade como lei justa?


Esse é o movimento que nos impele a lutar contra as injustiças e desigualdades sociais, sabendo inclusive do ônus de assumir determinadas posições. Não há flexibilização ou uma suposta neutralidade em um estado de barbárie. Esse conflito é facilmente “dissolvido” quando compreendemos o verdadeiro sentido do valor ético na sociedade, portanto a ética mobiliza os indivíduos a serem justos.


Invoco o poema do Bertolt Brecht: “suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar”.


* Manhana Reis de Castro

Gestora Ambiental,

Empreendedora

Aspirante a escritora






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