CADA SOCO UMA SENTENÇA: Quando o corpo da mulher é palco de impunidade
- Nieissa Pereira
- 3 de ago.
- 4 min de leitura

Uma manchete publicada em 27 de julho de 2025 expõe mais um capítulo da violência contra mulheres e provoca comoção imediata nas redes sociais: Juliana Garcia, foi cruelmente espancada por seu namorado, Igor Cabral, dentro de um elevador residencial em Natal (RN). Foram desferidos 61 golpes no rosto e a violência foi captada pelas câmeras de vigilância. Como consequência, a vítima sofreu múltiplas fraturas e teve que ser submetida a uma cirurgia de reconstrução facial.
Esse episódio causou uma onda de espanto e protestos em vários meios de comunicação, bem como ilustrou a crescente onda de violência contra a mulher no país. As estatísticas corroboram essa análise. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 trouxe à luz uma realidade espantosa: 1.492 feminicídios em 2024, o maior número desde a promulgação da lei específica de combate ao crime. Isso corresponde a quase quatro mortes por dia no país, muitas delas perpetradas por parceiros ou ex-parceiros dentro das residências das vítimas. Mas o horror dos dados numéricos ganha corpo quando se conecta ao rosto desfigurado e à história da mulher agredida em Natal. Cada soco era resposta a um padrão de dominação, de ameaças veladas e silenciosas, de humilhações e controle emocional, que a vítima relatou sofrer anteriormente — sem nunca ter formalizado denúncia.
Fato que deve ser comemorado é a sobrevivência de Juliana perante a agressão sofrida que configura uma tentativa de feminicídio que escancara muito além da violência individual: evidencia fracassos institucionais profundos na condução do enfrentamento da violência doméstica e de gênero. O ato bárbaro deve ser lido como expressão extrema de uma cultura de poder que normaliza o controle e o terror contra as mulheres.
A ausência de denúncia formal não traduz ausência de violência. Ao contrário: cerca de 80% das mulheres vítimas de violência de gênero não recorrem ao sistema de justiça por medo, descrença ou dependência emocional e financeira. Esse silêncio estruturado cria um terreno fértil para o escalonamento da violência, convertendo o âmbito íntimo em um laboratório da crueldade. Nesse contexto, a legislação mesmo tendo avançado ao longo dos anos com a edição de leis, como a Maria da Penha e do Feminicídio, esbarra na inércia institucional.
Apesar de expressivos marcos jurídicos, persiste um contraste dramático entre leis e realidade. Em 2024, 28,3% das vítimas fatais de feminicídio tinham medidas protetivas deferidas, mas apenas 3,6% delas foram acompanhadas por monitoramento eletrônico ou fiscalização contínua. Isso evidencia que medidas protetivas isoladas, em um ambiente de negligência sistêmica, tornam-se palavras frias no papel, sem oferecer barreira real contra o ciclo brutal da violência. A efetividade dessas ordens judiciais é sufocada por práticas de fiscalização fragmentadas, insuficiência de recursos humanos e ausência de integração interinstitucional.
Além disso, o contexto da violência brasileira é atravessado pelo racismo estrutural. A maioria das vítimas de feminicídio são mulheres negras, jovens, economicamente vulneráveis e residentes nos territórios periféricos, grupos historicamente invisibilizados pelo Estado. Sem políticas afirmativas e com baixa capilaridade institucional nesses territórios, essas mulheres se tornam alvos fáceis de um sistema que opera de modo mitigado para elas. As medidas protetivas, muitas vezes centradas nos grandes centros, não alcançam estas mulheres, que sequer possuem acesso a delegacias especializadas ou apoio psicológico.
A resposta estatal continua mecanicista. Delegacias de Atendimento à Mulher (DEAMs) frequentemente enfrentam deficiências estruturais: falta de equipe técnica capacitada, recursos materiais escassos e sobrecarga de atendimentos. O resultado é um atendimento burocrático e não acolhedor, que desencoraja a continuidade do processo por parte da vítima. Medidas protetivas são expedidas, porém sem acompanhamento efetivo, sem redes de apoio integradas e sem tecnologia de controle com resposta imediata ao descumprimento.
É imperativo que o enfrentamento à violência de gênero seja articulado substancialmente com promoção de transformação cultural. Isso inclui educação de gênero desde a base escolar, campanhas sobre masculinidade não violenta e construção de narrativas contra a normalização da misoginia como prática cultural. O controle político dos corpos femininos e a ideia de "donas da casa" precisam ser desnaturalizados por meio de ações culturais, mídia consciente e protagonismo feminino em espaços de poder.
No nível legislativo, é urgente universalizar a adoção de dispositivos tecnológicos como tornozeleiras eletrônicas, sistemas de alerta urgente via app, centrais integradas de atendimento e protocolos de risco com previsão de resposta imediata, inclusive a suspensão temporária de visitas domiciliares e inserção da vítima em programas de acolhimento psicossocial e profissional.
Esse caso específico acaba se tornando emblemático de uma fragilidade institucional que só escancarou o que já era visível: um Estado que falha em proteger, monitorar, punir e transformar. O rosto ferido daquela mulher é metáfora para o rosto da sociedade brasileira: dilacerado pela desigualdade de gênero, pela normalização da violência íntima e pela omissão dos poderes públicos. Que esse horror não se encerre nas páginas dos jornais. Que ele se converta em pressão política, em ação estatal articulada e em solidariedade social real.
Que os 61 socos não permaneçam como um crime contado apenas em imagens e estatísticas, mas como um marco de reflexão e transformação institucional. Que sirvam para que o Brasil se erga contra a impunidade, que escute suas mulheres em sofrimento e que rompa, de uma vez por todas, com o ciclo da violência que mata, de forma simbólica ou literal, quem ousa viver sem medo.
REFERÊNCIAS:
AGÊNCIA BRASIL. Brasil registra 1.450 feminicídios em 2024, 12% a mais que no ano anterior. 27 jul. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-03/brasil-registra-1450-feminicidios-em-2024-12-mais-que-ano-anterior. Acesso em: 1 ago. 2025.
CORREIO BRAZILIENSE. Mulher que levou 61 socos sofria agressões constantes, afirma polícia. 28 jul. 2025. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2025/07/7214589-mulher-que-levou-61-socos-sofria-agressoes-constantes-afirma-policia.html. Acesso em: 1 ago. 2025.
JORNAL DE ALAGOAS. Mulher é agredida com mais de 60 socos por namorado em Natal. 28 jul. 2025. Disponível em: https://www.jornaldealagoas.com.br/nacional/2025/07/28/5999-mulher-e-agredida-com-mais-de-60-socos-por-namorado-em-natal. Acesso em: 1 ago. 2025.
JORNAL CORREIO MS. 61 socos: caso no RN retrata escalada da violência contra mulheres. 28 jul. 2025. Disponível em: https://jornalcorreioms.com.br/noticia/91754-61-socos-caso-no-rn-retrata-escalada-da-violencia-contra-mulheres. Acesso em: 1 ago. 2025.
PODER360. Feminicídio: 4 mulheres são assassinadas por dia no Brasil. 27 jul. 2025. Disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-seguranca-publica/feminicidio-4-mulheres-sao-assassinadas-por-dia-no-brasil/. Acesso em: 1 ago. 2025.
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