Uma lei proposta por três deputados cariocas, e sancionada pelo governador do Rio Claudio Castro, causou estranheza. Publicada no Diário Oficial do Estado no último dia 25 de outubro, ela determinava que o acarajé seria, a partir daquela data, patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Pegos de surpresa, baianos se indignaram. “Acarajé é da Bahia!”, foi o tom dos posts furiosos nas redes. Especialistas, no entanto, não viram problemas nisso, afirmando que o famoso quitute é africano, e portanto, simbolizado em toda a cultura negra advinda da África. Sendo assim, ele seria universal, proveniente do povo iorubá, gerador do acará (que significa “bola de fogo”). Pelo que entendi, o acarajé pode ser patrimônio no Canadá, na China, no Catar, ou nas Ilhas Fiji. Basta ter um ancestral do ocidente africano nesses lugares que ponha a massa pra fritar.
Esse não é um assunto fácil de lidar, pois remete a muita coisa que passa ao largo dessa polêmica. Vou tentar tratar de alguns assuntos que margeiam essa questão.
Tenho parentes no Rio, parentes próximos, e nunca conversamos sobre o popular comércio de acarajé nas ruas daquele município. Nunca me pareceu cotidiano daquela cidade passear e sentar em algum local do calçadão de Copacabana e apreciar acarajé com Coca-Cola num fim de tarde. Vi uma reportagem de fevereiro desse ano no qual as “baianas de acarajé” do Rio estavam buscando o licenciamento municipal para poderem armar seus tabuleiros para vendas. Ou seja, me pareceu não ser uma prática muito antiga por lá comercializar o acarajé (em Maceió, sei que é bem comum). Nesse ínterim, também não encontrei nada sobre os complementos, vestimentas, e o que mais se vende além do acarajé por lá, nos tabuleiros. Outra curiosidade, é que não é “carioca do acarajé”, continua sendo “baianas”, o que remete a um lugar original de produção da iguaria que não é o Rio.
O carioca reconhece assim a gênesis de alguns elementos de sua cultura, já que os famosos desfiles de escola de samba do carnaval mantêm desde sempre a ala das baianas, mostrando deferências e referências às famosas “tias” que saíram do recôncavo baiano para armar batucadas nos quintais de suas casas na Cidade Maravilhosa, que geraram os primeiros sambistas e clássicos do gênero. Eles podem até incrementar muita coisa, mas cabe a Bahia a maternidade de muitas bases da cultura fluminense.
Mas não só no Rio. Conversando com um brother, ele me lembrou de como pratos típicos de outros locais trazem terminologias de nossa culinária. Do Espírito Santo vem a moqueca capixaba e no Pará tem até vatapá. Só recentemente fui saber que esse apêndice do acarajé era muito comum por lá e já vi algumas pessoas falando no vatapá como algo genuinamente paraense. Dividimos com eles também a maniçoba, prato de origem indígena feita com folha de mandioca. A Bahia, como terra mãe do Brasil, ao que parece, se dá ao trabalho de emprestar muito de seus itens típicos para outras unidades da federação. Não demoraremos de ver o xinxin de bofe como prato principal do Paraná ou o bolinho de estudante como doce muito popular em Rondônia.
Mas o que chamou mesmo atenção foi o fato do acarajé ser africano. Bom, no Benin e outros locais de cultura iorubá na África, realmente é secular mulheres com tabuleiros armados vendendo acará pelas ruas, ou seja, o nosso acarajé. Mas é a mesma coisa? Olha, é realmente complicado essa mania que temos de dizer que a fonte de nossa cultura “veio da África”. Vejo muito reducionismo nisso. Primeiro, que o continente africano é composto de 54 países, cada um com sua maneira de falar, de se vestir, com idiomas diferentes, estilos musicais diversos, comidas variadas, muitas etnias, modos de produção distintos, enfim, uma parafernália de conhecimentos. Claro que a matriz é de lá – óbvio, inquestionável. Mas também não podemos nos referir a África como se fosse um município, uma Feira de Santana que tá logo ali, de onde vieram a capoeira, o berimbau, o candomblé, os blocos afro, o samba, o acarajé, tudo formatado, pronto, e acabado, pra gente usufruir como se tivéssemos sequestrado tudo! Achando também que um povo que vive no Saara, outro nas savanas de Angola, e na periferia de Johanesburgo, é a mesma coisa, pois todo mundo é africano!!!
Essa visão da África como se fosse um território homogêneo atrapalha muitas discussões sobre o desenvolvimento de todas essas práticas culturais que mencionei acima. Em nossa terra, debaixo de muito sofrimento, tragédias, e extermínios, foi se consolidando diversas filosofias, entendimentos, e experiencias muito diferenciadas, que não podem livremente serem associadas com o território africano de forma simplista e determinante. O acará africano é uma prece pra Iansã? A baiana de acarajé se comporta igualzinho a uma habitante do Benin? Quais são os hábitos de consumo dessa guloseima lá? É ligado a uma religião? Há leis patrimoniais sobre ele? Como assim “é africano”? Isso basta?
Um exemplo: os “cantos de ida e volta”, como descreveu a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha em “Cultura com Aspas”,
“eram produtos coloniais introduzidos na Espanha, frutos da apropriação e transformação de gêneros musicais flamencos nas colônias que hoje são Cuba, Colômbia, e Argentina.”
Assim como colonos tranformaram ritmos oriundos do país imperialista, quem garante que antigos ancestrais não retornaram influindo produtos hibridizados, gerando novas conformações? Isso mostra como a Bahia é ao mesmo tempo uma espécie de imã e bússola: atrai muita coisa e norteia para outros horizontes. Dodô e Osmar desenvolveram o frevo elétrico, um modo condensado de reproduzir o som das orquestras pernambucanas em cima de um trio. Como cantou Caetano, "um frevo novo". Mas dá pra criarmos uma lei pra dizer que o frevo é um patrimônio cultural da Bahia??? Peraí, né?
Por falar em Bahia, que Bahia é essa? Sabemos que a cultura baiana, tão negra, mitificada e difundida pelos romances de Jorge Amado, pelas canções de Caymmi, pelas pinturas de Caribé, não se estende de forma isonômica por todo estado. Não sei se o axé é a música do verão de Barreiras; se o caruru é prato da Semana Santa de Pilão Arcado; se há blocos afro em Irecê; se Bahia e Vitória são os times preferidos dos torcedores de Teixeira de Freitas; se há tantos terreiros de candomblé em Guanambi como há em Cachoeira. Somos um estado singular...e plural. Se a Bahia não pode ser uniformizada, porque todo um continente africano seria?
Por fim, uma provocada nos cariocas: se o samba é música nacional estando lá sua base e agora o acarajé é patrimônio, não me surpreenderia se a Lavagem do Bonfim for do Leme ao Leblon e o Farol da Barra iluminar as águas da Baía de Guanabara.
FONTE:
IMAGEM: Mundo negro
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