Um dos primeiros textos que escrevi quando ingressei nessa jornada de analisar minhas experiências na condição social de mulher oprimida pelo machismo, ao mesmo tempo em que estudava conceitos e ideias discutidas pelas campos feministas e maternos, foi a abordagem da carga mental, especialmente na condição de mulher casada e depois, como mãe. Com o nome “Carga Mental: sobre ser o “HD” de alguém”, esse material rodou alguns sites e me abriu os olhos sobre como eu e outras mulheres anônimas compartilhávamos de um sentimento universal, algo que me entusiasmou a seguir produzindo mais conteúdo.
Na época em que escrevi o texto, me debrucei em detalhar minha experiência angustiante e gradual de entender como eu sofria de carga mental no meu casamento e como isso está conectado a desigualdade de gênero, presente nos lugares de planejamento mental - algo improvável para quem achava que seu esposo a “ajudava” nas tarefas domésticas. Eu comento brevemente sobre o conceito de carga mental, o resultado de pesquisas sobre diferenças no peso das atividades domésticas em relação aos gêneros e como os estereótipos neste campo alimentam a perspectiva de que o lugar do cuidado integral está acomodadamente repousado apenas no lado feminino.
Acho que esse assunto pode ser revisto agora sob uma perspectiva diferente e necessária sobre como os mecanismos machistas possuem muitas camadas e analisá-las nos endereçam a dimensionar os lugares das mulheres como ferramentas de uma engenharia ajustada para que elas não se mobilizem com autonomia por outros lugares. Se no texto anterior, eu relacionei minhas percepções sobre como eu era a única que cuidava de tudo e, assim, consequentemente, sofria as angústias de uma mente exausta e inquieta, aprisionada a listas e mais listas, neste momento, posso relacionar esse desequilíbrio a abordagem da Valeska Zanello sobre como o dispositivo amoroso possui grande probabilidade de desaguar no dispositivo materno, maternando homens adultos.
Apropriando-se da concepção de dispositivo de Foucault, Zanello (2020) compreende a relação de poder engendrado ao corpo feminino através de dispositivos. Dois deles, destacam-se: o dispositivo amoroso e o dispositivo materno. A autora aponta o dispositivo, segundo Foucault, como um conjunto muito variado de “discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”. Em relação a dimensão de poder do dispositivo, existiriam linhas de força, em distribuição e tensão, que se tornam responsáveis pela produção de subjetividades e, como sociedade disciplinar, todos os elementos do dispositivo criam corpos dóceis, suscetíveis às suas determinações.
Com essa perspectiva, Zanello encara o dispositivo amoroso como esse lugar de encarceramento da subjetividade que coloca a mulher à disposição de sempre se dedicar e se preocupar como, onde e de que maneira manter sua relação amorosa. Isso exige altos sacrifícios e, muitas vezes, a anulação da identidade própria e da autonomia emocional feminina. Resumindo, a autora explica:
“Assim, muitas mulheres acabam por se casar com o próprio casamento, independentemente do parceiro que arranjem, e principalmente, da satisfação ou não que tenham com essa relação. Muitas mulheres suportam melhor o desamor do que não ter alguém. E adoecem.”
Quanto ao dispositivo materno, ele é explicado pela autora segundo a elucidação de que nossa ideia de maternidade como um amor incondicional é uma aquisição social e cultural recente, engendrada por vários grupos de poder como a igreja, a burguesia e a medicina. Ela aponta como esse mecanismo está conectado ao cuidar:
“a naturalização da capacidade de cuidar (em geral) nas mulheres, decorrente justamente dessa mescla (razoavelmente recente, com o advento do capitalismo) entre a capacidade de procriação e a maternagem, bem como seus desdobramentos, como as tarefas dos trabalhos domésticos e a responsabilização pelo bom funcionamento da casa. Uma diferença física foi transformada em desigualdade social, tanto na atribuição naturalizada das tarefas do cuidar (cuidar dos filhos, da casa, mas também, de enfermos, deficientes, pessoas idosas etc.), quanto na invisibilização e desvalorização delas (mesmo quando exercidas profissionalmente têm baixos salários e, muitas vezes, condições precárias).”
É nessa ponte do “cuidar” que podemos conectar o dispositivo amoroso com o dispositivo materno. Se, no primeiro, estamos programadas para fazer o que for necessário para segurar o relacionamento amoroso e não ficar para “titia”, no segundo, performamos as ações de cuidar pela perspectiva de maternar esse homem, empreendendo enorme esforço para entender suas vontades, apaziguar suas dores e reciprocar seus ímpetos. Ele chegou chateado do trabalho? Perceba os sinais, evite comentar no assunto e exalte suas qualidades. Ele não dá conta de ficar sozinho com os filhos e está deixando de se dedicar aos seus sonhos por causa disso? Ceda mais do seu tempo, pague por alguém, peça ajuda a sua mãe e o faça ser livre para que ele não pense que o casamento de vocês está impedindo-o de ser feliz e realizado.
Comprovando essa tendência “maternalista” nos relacionamentos, posso resgatar aqui um artigo de maio de 1955, que saiu na revista Housekeeping Monthly sobre “o guia da boa esposa”, que estabelecia regras sobre o que a mulher deve fazer para ser boa com seu marido. Observe algumas delas:
A maioria dos homens estão com fome quando chegam em casa e esperam por uma boa refeição (especialmente se for seu prato favorito).
Seja amável e interessante para ele. O dia dele foi chato e talvez ele precise que você o anime.
Minimize os ruídos. Quando ele chegar, desligue a máquina de lavar, secadora ou vácuo. Incentive as crianças a ficarem quietas.
Você pode ter uma dúzia de coisas a dizer para ele, mas a sua chegada não é o momento. Deixe-o falar primeiro. Lembre-se, os temas de conversa dele são mais importantes que os seus.
Ainda que nos dias atuais não estejamos presas a regras tão rígidas sobre nosso comportamento perante um esposo, a ideia central sobre regular nossa vida, rotina e atenção para que o outro não seja incomodado e, de fato, seja amparado emocionalmente graças ao nosso autocontrole em manter a casa ou qualquer outro aspecto da vida em ordem ainda é passível para muitas mulheres em nossa volta. Eu mesma assumi esse lugar quando, ainda que percebendo inúmeros sinais de que meu marido não era recíproco no sentido de dividir as cargas mentais, eu me auto-justificativa dizendo que ele tinha uma personalidade diferente da minha.
Ser o HD dele era uma forma de materná-lo como um pessoa incapaz de assumir a autonomia de um adulto funcional. Eu amenizava as discussões e conflitos, que eram recorrentes com os constantes esquecimentos e falta de iniciativa dele, e acumulava na minha própria cabeça a infinitude de compromissos da rotina a dois, e depois a três, com a chegada do nosso filho. Se eu conseguia “dar conta” e a relação ficava mais fácil com essa função minha, por que não fazê-lo? Afinal, menos brigas significaria que a relação duraria mais tempo e o casamento jamais passaria pela porta do divórcio.
E esse ciclo perdurou ao longo de quase dez anos de relacionamento: meu dispositivo amoroso me impelia a lutar por aquela relação e o dispositivo materno, antes mesmo de eu me tornar mãe, me deu acomodação de acatar uma quantidade imensa de carga mental como um sinal de cuidado e amor por aquele homem. Os dispositivos apenas se rompem quando os sinais de uma saúde mental prejudicada começam a afetar todas as áreas da minha vida. Além disso, quando passo a cuidar de um ser realmente desamparado, como meu filho pequeno, entendo como a vivência de mãe tinha um local certo para ser aplicado e não fazia sentido direcioná-lo para um adulto tão capacitado e inteligente como eu. Se daquela cabeça saia uma composição musical de dez minutos com todos os detalhes de instrumentos, melodia e ritmo, quão difícil seria lembrar a hora de tomar o remédio e anotar a lista de compras?
Enfim, é a primeira vez que faço esse exercício de revisitar um texto meu através de outras perspectivas das discussões feministas na vida conjugal, doméstica e maternal. Isso revela o quão profundas são as teias de opressão presentes em nossas experiências com os homens, especialmente quando abordamos os relacionamentos conjugais. E você? Sente que já maternou um homem?
FONTE:
ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Editora Appris, 2020.
Excelente! E por isso precisamos lutar por uma outra forma de educar homens, desde a infância, incentivando brincadeiras que ensinam cuidado de si, do outro, da casa, delegar as responsabilidades do lar que são normalmente delegadas as meninas. Assim, não formamos “homens fracos”, mas homens autônomos e com inteligência emocional mais apurada. Estava vendo um vídeo de um homem brincando com a filha, ela estava maquiando ele. Várias críticas de outros homens rolaram nos comentários dizendo que o pai estava deixando de ser uma referência masculina para a filha e que estava se afeminando. Veja como esses sujeitos estão emocionalmente atrofiados…