DEUS, PÁTRIA, E FAMÍLIA - PARTE I
- Everton Nery

- 10 de set.
- 3 min de leitura

A expressão “Deus, pátria e família”, tornada bandeira ideológica por determinados grupos políticos contemporâneos, evoca uma suposta tríade de valores inegociáveis. No entanto, quando examinada sob a lente crítica do Antigo Testamento, esse tripé revela um fundamento paradoxal, atravessado por ambiguidades, violências e contradições históricas que desafiam qualquer leitura simplista ou idealizada.
A concepção de Deus no Antigo Testamento, especialmente no Pentateuco e nos livros históricos, difere radicalmente da imagem acolhedora frequentemente mobilizada por discursos religiosos modernos. Trata-se de um Deus guerreiro, o "Senhor dos Exércitos", que marcha à frente de seu povo, ordenando genocídios, punindo com rigor, exigindo sacrifícios e obediência inquestionável. Esse Deus tribal, cuja aliança está restrita a um povo específico, Israel, age muitas vezes por meio da destruição de povos vizinhos, tratados como inimigos monstruosos e ontológicos. Quando esses citados grupos políticos invocam "Deus" como selo de moralidade absoluta, ignora que esse Deus bíblico se alicerça em códigos que justificam guerras santas, subjugações e o extermínio do “outro”. É um Deus que pune com pragas, incendeia cidades e assassina primogênitos, não por prazer, mas por fidelidade à sua própria lógica de aliança, exclusão e domínio.
Quanto à família, o Antigo Testamento está longe de apresentar o modelo monogâmico, nuclear e higienizado frequentemente idealizado pela retórica conservadora. O que ali se vê são famílias patriarcais dominadas por figuras masculinas com múltiplas esposas e concubinas, como os casos de Jacó, Davi e Salomão, disputas entre irmãos por bênçãos e heranças, relações incestuosas e casos de violência doméstica tratados com silêncio ou punições desiguais. A família, nesses relatos, é antes de tudo um instrumento político e econômico de perpetuação do nome e do patrimônio. Reduzida a uma função de procriação e aliança estratégica entre clãs, a mulher quase nunca é vista como sujeito, mas como meio. Portanto, ao se evocar a “família” como valor sagrado e imutável, apaga-se a complexidade histórica e a violência simbólica e estrutural presente nessas narrativas fundantes.
O conceito de “pátria” no Antigo Testamento também não corresponde à ideia moderna de nação plural, democrática e inclusiva. A terra prometida é, em seu princípio, uma promessa exclusiva feita a um povo escolhido, e a sua posse se dá por meio da guerra, da expulsão e da aniquilação dos povos nativos. A pátria bíblica é mais um projeto teológico de expansão e purificação do que uma construção coletiva de cidadania. Não é um espaço de hospitalidade, mas de delimitação rígida entre os “nossos” e os “outros”. O estrangeiro, o impuro, o desviado, todos são ameaças ao pacto. Nesse cenário, a ideia de pátria deixa de ser lar e se torna trincheira; não é abrigo, mas fronteira; não é convivência, mas exclusão.
Ao serem mobilizados pelos conservadores, as palavras “Deus, pátria e família” tornam-se palavras-fetiche que ocultam mais do que revelam. São invocadas como verdades absolutas, mas calcadas em interpretações parciais, seletivas e muitas vezes deturpadas de textos sagrados. Há um projeto de pureza por trás da retórica: uma pátria sem diversidade, uma família sem dissenso, um Deus domesticado à imagem dos que dominam.
O Antigo Testamento, ao contrário, é terreno fértil de contradições, ambiguidades e resistências. É um livro onde Deus se ira e se cala, onde a família se fragmenta, onde a terra é conquistada, mas nunca plenamente pacificada. Reduzir essas experiências simbólicas e existenciais a slogans ideológicos é não apenas ignorância teológica, mas também um gesto de violência hermenêutica, e, em última instância, politicagem rasteira.
Talvez fosse necessário lembrar que o mesmo Deus que exige obediência no deserto é também aquele que se recusa a ser contido por templos e discursos fechados. E que, mais adiante, o Evangelho viria propor um outro tipo de família, não baseada no sangue, mas no cuidado, e um outro tipo de pátria, não construída pela espada, mas pelo amor.
Um grande Xêro no coração!
FONTE DA IMAGEM: Portal da Diocese de Apucarana



Ao refletir sobre o lema “Deus, pátria e família” pelo olhar do Antigo Testamento, percebo que Deus é retratado como guerreiro, punidor e ligado exclusivamente a Israel, bem diferente da ideia acolhedora que vemos hoje. Também noto que a família na Bíblia era patriarcal, poligâmica e funcionava mais como estratégia política do que como a imagem idealizada de hoje. Quanto à pátria, ela aparece como uma promessa exclusiva, conquistada por guerras e expulsões, e não como um espaço plural. Para mim, usar essa tríade de forma conservadora acaba simplificando e distorcendo toda a complexidade desses textos.