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DO TRABALHO, DO ÓCIO CRIATIVO AO PROJETO DE JESUS



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O Dia do Trabalho, celebrado em 1º de maio em diversas partes do mundo, remete-se a uma história marcada por lutas operárias, conquistas sociais e disputas por dignidade. No entanto, para além das celebrações institucionais, há urgência em reabrir o debate sobre o sentido profundo da palavra “trabalho”, suas raízes, suas violências implícitas e as possibilidades de reinvenção.


A palavra trabalho deriva do latim tripalium, um instrumento de tortura formado por três paus, usado para imobilizar ou castigar escravizados e condenados. Este dado etimológico não é mero detalhe semântico: ele carrega a marca do sofrimento, da coação, da submissão física. Por isso, o trabalho, desde sua origem linguística no mundo romano, está vinculado a dor, esforço compulsório e desumanização.


A herança cultural da palavra insinua que o trabalho esteve historicamente associado à privação da liberdade, à dor e ao controle sobre os corpos. Mesmo na modernidade capitalista, a lógica do trabalho conserva, em muitos casos, sua dimensão disciplinar, cronológica e punitiva, seja no relógio-ponto, nas metas inatingíveis ou na alienação cotidiana.


Em contraste, o oposto do trabalho não era o "lazer" no sentido superficial que hoje se usa, mas o ócio, do latim otium. Este designava o tempo livre dos cidadãos romanos para pensar, criar, filosofar, debater, contemplar, Assim, o trabalho era tido como indigno das elites, reservado aos servos, enquanto o ócio era um privilégio altivo, uma abertura para a vida da mente.

Uma hermenêutica crítica do termo revela o conflito de classe e de sentido por trás da divisão do tempo humano. Essa divisão, herdada e adaptada ao sistema capitalista, criou uma sociedade onde o valor da pessoa é medido por sua produtividade, não por sua capacidade de criar, amar, imaginar, pensar ou simplesmente existir.


Nesse contexto, emerge com potência o conceito de “ócio criativo”, proposto por Domenico De Masi, sociólogo italiano. Para De Masi, o ócio criativo não é preguiça nem alienação: é a síntese entre trabalho, estudo e lazer. É uma nova forma de organizar o tempo e o sentido da existência, em que a criatividade, a autonomia e o prazer estão no centro da atividade humana.


O ócio criativo desafia a rigidez do tempo cronológico (Kronos) e valoriza o tempo vivido com sentido (kairós). Ele propõe que a produção de valor não precisa estar ligada à exaustão, ao tédio ou à obediência a normas desumanizantes. Ao contrário, pode emergir do jogo, da contemplação, da arte, da troca afetiva e da liberdade.


Nesse sentido, retomar o debate sobre o trabalho no Dia do Trabalho é também reivindicar o direito ao tempo livre, à criação, ao não fazer produtivista, ao otium como espaço de dignidade. É subverter a lógica que transformou o trabalho em punição e recolocar no centro a vida em sua potência criativa.


À luz do cristianismo das origens, o trabalho não é concebido como maldição, castigo ou punição divina, mas como possibilidade de realização existencial e partilha solidária. O Projeto de Jesus de Nazaré ressignifica radicalmente a noção de trabalho. Em suas palavras e gestos, Jesus dignifica os que trabalham, aproxima-se dos pescadores, dos artesãos, das mulheres que trabalham no cuidado e na subsistência. Não como um elogio à precariedade, mas como denúncia profética da exploração e afirmação do valor de toda existência humana.


Nos evangelhos, Jesus afirma: “Meu Pai trabalha até agora, e eu também trabalho” (João 5,17). Essa afirmação pode ser lida não como uma validação do trabalho compulsório, mas como uma revelação da ética do cuidado e da justiça. O “trabalho” de Jesus é curar, libertar, acolher, denunciar injustiças, consolar, ou seja, um fazer que restaura e gera vida plena. No Sermão da Montanha e nas parábolas, o Reino é comparado a ações pequenas, criativas, silenciosas, mas revolucionárias, tais como semear, cuidar, transformar.


Neste projeto, o ócio criativo encontra eco: Jesus retirava-se para orar, contemplar, silenciar-se, subvertendo o paradigma da produtividade constante. Sua prática incorpora a pausa, o desvio, o encontro gratuito. Numa sociedade onde o valor está atrelado ao desempenho, o Cristo que lava os pés e parte o pão convida a um trabalho que não escraviza, mas emancipa.


O Dia do Trabalho não deve ser apenas uma data comemorativa, mas uma oportunidade de revisitar criticamente os sentidos históricos, sociais e existenciais do trabalho humano. A etimologia de tripalium revela que o trabalho, desde sua raiz, esteve associado à dor e submissão e, ainda hoje, sob o verniz da produtividade, muitas formas de trabalho continuam marcadas por violência simbólica e material.


Ao introduzirmos o Projeto de Jesus, revelamos outra possibilidade: a do trabalho como serviço que liberta, como gesto amoroso que resgata a dignidade. Jesus não aboliu o trabalho, mas deslocou seu eixo: da produção à relação, da exploração ao cuidado, da obrigação à partilha. É nessa chave que se pode sonhar uma nova economia do tempo, uma nova ética do fazer, que una trabalho e descanso, técnica e arte, esforço e contemplação.


Celebrar o 1º de maio, portanto, é (re)encantar o sentido do trabalho, não como castigo, mas como expressão de humanidade. E como Jesus, sermos capazes de parar, contemplar e transformar o mundo não apenas com as mãos, mas com o coração e a esperança.


IMAGEM: Paralelo Blog

41 commentaires

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Carla Almeida
03 août
Noté 5 étoiles sur 5.

Uma boa reflexão sobre o dia do trabalhador, o texto faz a gente pensar no verdadeiro sentido do trabalho. Mostra que, desde a origem, ele esteve ligado à dor e à obrigação, mas também traz uma nova ideia: a do “ócio criativo”, que mistura trabalho com prazer, estudo e tempo livre. Com base no exemplo de Jesus, o texto defende um trabalho mais humano, feito com cuidado, amor e sentido.


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Yuji Nakanishi
03 août
Noté 5 étoiles sur 5.

O 1º de maio não devia ser só feriado, nem só memória de lutas devia ser também um chamado pra gente repensar o que, de fato, é trabalhar. Porque se o trabalho ainda fere, exaure, desumaniza… tem algo errado. E se Jesus trabalhava, também sabia parar. Contemplar. Respirar. Servir com sentido. Talvez o desafio hoje seja esse: resgatar o valor do fazer, mas também do não fazer. Trabalhar sim, mas sem esquecer que a vida vale mais que a meta.

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Invité
02 août

Achei interessante como fé, trabalho, descanso, se combinam de uma forma surpreendente. A ideia de que o lado criativo pode ser um espaço sagrado, inspirado no projeto do nosso Senhor Jesus Cristo, me trouxe uma visão mais leve do dia a dia. O texto traz a visão de que fazer menos por obrigação mas com propósito de se conectar com a sua espiritualidade transformando tarefas simples em gesto de entrega. Trazendo a visão de viver com vontade o dia a dia com mais sentido.

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Renata Sousa
11 juil.
Noté 5 étoiles sur 5.

O texto fala sobre a história e as implicações do trabalho, destacando sua origem na palavra "tripalium", que remete a um instrumento de tortura, e como isso reflete o sofrimento e a submissão que historicamente marcaram o trabalho. A partir disso, questiona-se a visão moderna do trabalho, que continua a ser um reflexo de uma lógica de produtividade constante e exploração. Ao contrastar com o conceito de "ócio criativo", proposto por Domenico De Masi, o texto defende a ideia de que o trabalho não precisa estar ligado à exaustão, mas à criatividade e ao prazer. Ele também resgata a visão cristã sobre o trabalho, onde Jesus transforma a noção de trabalho, propondo-o como um serviço libertador e solidário, não uma…

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Ana Melissa
11 juil.
Noté 5 étoiles sur 5.

A reflexão traz um olhar bem interessante sobre o trabalho, mostrando suas raízes duras e como ainda hoje ele pode ser uma forma de sofrimento e controle. Ao mesmo tempo, apresenta o “ócio criativo” como uma forma de resgatar a liberdade, a criatividade e o prazer no fazer. A ligação com o projeto de Jesus reforça a ideia de que o trabalho pode ser um gesto de cuidado e transformação, não apenas uma obrigação. É um convite para pensar o trabalho de um jeito mais humano e equilibrado, valorizando também o descanso e a contemplação.

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