A Jornada Solar é uma ferramenta de desenvolvimento pessoal voltada para homens
Demorou para eu perceber que autoconhecimento, autocuidado e inteligência emocional também era coisa de homem. Não que eu já não buscasse isso há muito tempo, mas praticamente não tinha interlocutores masculinos para me inspirar e compartilhar sobre. Mas, benzadeus, um amigo muito querido me apresentou no início do ano passado a Jornada Solar: um projeto pioneiro de livro-agenda voltado para homens.
A agenda me acompanhou todo o ano de 2023 e, olha, fez muita diferença. Descobri coisas bem legais: arquétipos masculinos, a aplicação da jornada do herói na própria vida, monitoramento de hábitos etc, etc. O projeto tem muito conteúdo, muito espaço para escrita e muita sugestão de práticas: é um ato diário de olhar para si mesmo, se conhecer e trabalhar as próprias questões.
E sei que tem muitos homens que também têm esse desejo de estarem mais saudáveis na própria masculinidade, mas não sabem muito bem como fazer isso. Foi pensando em vocês que convidei o idealizador da Jornada Solar, o Juliano Poeta, para bater um papo comigo. Ele foi super generoso em aceitar esse convite e concedeu uma bela de uma entrevista pelo zoom. Nossa conversa foi muito além da Jornada Solar: falamos sobre a solidão masculina, a falta de confiança que os homens têm entre eles, qual o papel do homem na contemporaneidade e outras coisas mais.
A entrevista editada segue abaixo, mas se quiser se aprofundar nessas discussões, vale a pena ver o material completo em nosso canal do Youtube . Boa leitura!
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[Soteroprosa] O que é a Jornada Solar e como os homens podem se beneficiar dessa ferramenta?
[Juliano Poeta] A Jornada Solar é um movimento de homens que buscam expressar sua masculinidade de uma maneira consciente. A gente vê hoje nas estatísticas que os homens vivem 7 anos a menos que as mulheres, somos 95% dos presos no mundo, 90% das vítimas de homicídio. Então, claramente existe um problema a ser resolvido, e esse problema está muito enraizado na forma como a gente aprende a ser homem.
Eu faço alguns trabalhos dentro de escolas e sempre pergunto para as meninas e os meninos quem tem um diário. Normalmente, metade das meninas tem e nenhum menino tem. Então existe uma questão cultural que nos ensina que escrever sobre a própria vida é algo de “mulherzinha”, que não é para os homens. E hoje a gente sabe que escrever sobre a própria vida é uma prática terapêutica que ajuda muito na sua saúde emocional.
Se você for procurar agendas para mulheres na internet, vai encontrar umas cinco ou seis com facilidade. Agora, se você for procurar uma agenda para homens, você não vai achar – no máximo, um livro com capa preta e páginas em branco.
A única que existe é da Jornada Solar, ou você tem conhecimento de alguma outra?
Quando a gente começou a Jornada Solar, existia uma outra chamada Diário Solar, que foi criada por uma mulher, mas ela fez, acho, uma ou duas edições e não seguiu adiante. Também já vi livros com conteúdos, mas uma agenda que vai te acompanhar durante o ano eu nunca encontrei. Pode ser que exista, mas nunca ouvi falar de uma iniciativa assim. Então a Jornada Solar é algo pioneiro nesse sentido.
E, claro, a gente se inspirou nas agendas femininas, mas a gente fez uma focada realmente para os homens, com uma série de ferramentas para usar diariamente e praticar o autoconhecimento. Se fala muito de autoconhecimento, saber gerenciar suas emoções, entender mais sobre por que você tem os comportamentos que você tem, mas pouco se pratica.
Então, a Jornada traz ferramentas como monitoramento de hábitos, qualidade do sono, praticar a gratidão diariamente e várias coisas que a gente já sabe cientificamente que ajudam a você ter uma vida melhor. Então, esse é o nosso propósito: ajudar os homens a se conhecerem mais através do uso dessas ferramentas.
E qual foi a sua maior motivação quando você estava criando esse projeto?
Juliano Poeta com as edições anteriores da Jornada Solar e outros livros de sua autoria.
A minha motivação era que eu precisava dessa ferramenta. Eu queria algo assim e não encontrei, então eu disse “Bom, vou fazer”. Eu tinha ficado quase dez anos trabalhando como consultor de empresas, ajudava, principalmente, empreendedores na área social a criarem seus negócios, e entendi que era o momento de eu criar o meu próprio negócio. Eu já tinha publicado dois livros de poesia e aí eu comecei a me juntar a outros homens para fazer esse trabalho coletivamente.
Então a Jornada nasceu de uma inspiração minha que eu tive com a minha companheira, a Fran, que hoje é minha sócia na jornada, e também através do contato com outros irmãos. Hoje a gente já está na 5ª edição.
E como você avalia esses cinco anos? Você sente que tem crescido mais a aceitação e a própria questão do homem trabalhar a masculinidade? Teve avanço nesse sentido?
Com certeza. Existem hoje muitos mais grupos de homens do que antigamente. Se você abrir um streaming, vai encontrar séries, filmes, que falam sobre esse assunto. Você liga a TV e está lá no GNT o Papo de Segunda, quatro caras falando sobre esse assunto. Teve um crescimento exponencial. E, além dos livros, a Jornada também faz eventos, e existem hoje outras pessoas que também fazem isso. Há cinco anos, quando a gente começou, existia muito menos. Hoje em dia, eu acho que deve ter crescido umas dez vezes pela quantidade de iniciativas que eu conheço. Isso não é um dado estatístico, mas na minha percepção cresceu umas dez vezes.
Você trabalha também com grupos de homens. Nesse contato que você tem, o que você percebe que é o maior sofrimento do homem contemporâneo? Quais as dificuldades, dores e questões de cura que os homens demandam?
Olha, eu acho que a grande questão é a gente se sentir perdido, não saber exatamente qual é o nosso papel. Antigamente existia um papel muito bem definido para os homens, que era o de sermos os provedores. Então, as mulheres ficavam dentro de casa cuidando da família e os homens saíam para prover. Hoje em dia não é mais assim: as mulheres também são provedoras, pagam suas próprias contas, são empoderadas, sabem tomar conta de si mesmas.
E a gente perdeu o nosso papel porque o homem muitas vezes não precisa mais ser o provedor e, ao mesmo tempo, não sabe ser o cuidador. Se você for ver quem são as pessoas que cuidam dos idosos, dos doentes, das crianças, são sempre mulheres. Os homens não estão nos postos de saúde básico, não estão nas escolas de educação infantil. A gente está em outros lugares: dentro do Exército, nos canteiros de obras, nas organizações políticas, mas a gente muitas vezes não encontra o nosso papel no mundo.
Então, isso gera uma grande solidão nos homens, de não saber qual é o seu lugar e de, muitas vezes, não confiar nos outros homens. Então, existe hoje uma grande dependência emocional dos homens em relação às mulheres. Além de ser esposa, ela vira muitas vezes a terapeuta do cara, porque ele só consegue se abrir com ela. Ele não consegue se abrir com amigos. Os caras falam sobre futebol, sobre política, sobre trabalho, mas não falam sobre o dilema de criar a filha, que ela foi mal na prova de matemática e você não sabe muito bem o que fazer e que você não quer bater nela, mas é o único jeito que você sabe…
E os caras têm muita dificuldade de falar isso entre eles porque existe uma falta de confiança. E por que existe essa falta de confiança? Porque a gente cresceu muitas vezes sacaneando o outro. As brincadeiras que os meninos fazem têm muito a ver com isso, tirar um sarro com outro cara, dar um tapinha nas costas do outro para machucar, né? São todas brincadeiras que geram uma desconfiança.
Então a gente precisa, em primeiro lugar, reaprender a confiar nos homens. A gente está acostumado a sair na rua e ser visto como um potencial bandido. Você vê uma mulher andando sozinha na rua de noite e você pensa: “é uma potencial vítima”. Você vê um homem andando sozinho na rua, vestindo um capuz, e pensa, “é um potencial bandido”. Eu posso confiar na mulher e não posso confiar no homem. Então isso gera uma solidão muito grande nos homens, de não poder confiar uns nos outros, e a gente no grupo de homens justamente busca curar essa ferida. Porque quando você confia na outra pessoa, tudo fica mais fácil.
Essa questão do homem estar mais perdido hoje em dia é reflexo também da evolução social da luta das mulheres. As mulheres estão encontrando a sua independência. Seria como, então, se o homem ainda não tivesse absorvido essa mudança social e encontrado sua função?
Exatamente. A gente precisa encontrar novas formas de conviver, porque as formas antigas já não servem mais. Eles não são mais os provedores, mas, ao mesmo tempo, você entra no Instagram e tá lá um dizendo que você tem que pagar a conta, o outro dizendo que você tem que rachar, o outro dizendo que não sei o quê. Então fica uma grande discussão e a gente não se dá conta que o melhor caminho seria simplesmente você perguntar para a pessoa que está na sua frente o que ela prefere. A gente não se abre para essa possibilidade tão simples de você conversar e expor a sua dúvida para a pessoa que está na sua frente.
Eu sei que a Jornada Solar é focada nos homens, mas também sei que tem mulheres que fazem uso da agenda. Como é isso? De que forma esse projeto pode beneficiar as mulheres também?
O Planejamento da rotina matinal é um exemplo de ferramenta de autocuidado da Jornada Solar.
A gente tem hoje vários casos de mulheres que usam a Jornada – não sei te dizer o percentual, mas conheço dezenas de mulheres que usam. A mulher pode ler, pode usar as ferramentas, pode monitorar os hábitos dela. A Jornada tem uma pegada mais masculina, uma capa preta com sol dourado, mas tem muitas mulheres que se identificam, que se consideram mais masculinas.
Então a gente faz um material direcionado para os homens, mas isso não impede em nada que as mulheres usem a Jornada Solar e tenham os mesmos benefícios que os homens: de se conhecer mais, monitorar o seu sono, registrar ali os seus aprendizados do dia, marcar como se sente. Por mais que existam muitas agendas femininas direcionadas especificamente para mulheres, tem algumas que preferem usar a Jornada Solar, está tudo certo.
Você acha que essa questão de trabalhar a masculinidade não está junto com uma luta anticapitalista, no sentido de que muitas dessas opressões tem a ver com a forma como a sociedade se organiza, do homem ser brutalizado pelo trabalho para produzir? Como você enxerga isso?
Isso com certeza está vinculado com o capitalismo, e não só com o capitalismo, mas com uma visão de mundo eurocêntrica que foi implantada em nós. Quando você vai em uma aldeia e conversa com pessoas que são povos indígenas, você vê que eles têm uma outra visão de mundo. Não que tudo seja só flores, mas existe uma outra perspectiva que está muito mais vinculada com a cooperação. Esse modelo de visão de mundo, mais vinculado com a cooperação, de certa forma quebra o capitalismo, porque o capitalismo está vinculado sempre com a necessidade de você ter mais.
Então eu preciso do próximo modelo de iPhone, de um carro melhor, da roupa da moda, e isso sustenta toda uma cadeia de produção. E essa fome pelo consumo sustenta também essa necessidade dos homens de estarem sempre provendo mais e mais e mais. E é sempre o excedente que importa, e quando a gente fica sempre tirando o excedente, a Terra não aguenta. A gente fica sempre criando modelos de produção para ter mais, só que isso não é sustentável a longo prazo. E a gente não está se dando conta disso, né? A gente precisa olhar para isso com um olhar mais crítico, eu acho que a gente está tendo muita pouca criticidade em relação a isso.
Uma das coisas mais interessantes que eu vi na Jornada Solar foi a questão do rito de passagem dos homens, essa ritualística de se transformar de menino para homem. De que forma os homens podem fazer esses ritos de passagem?
Hoje em dia a gente vê a síndrome do Peter Pan, que é um monte de homem crescido, mas com comportamento de criança. Então o cara tem 30 anos, mas é a mãe que arruma a cama, é a mãe que faz a comida, só falta a mãe dar banho na nesse homem. São homens meninos.
Hoje em dia existem muitos povos originários que mantêm seus ritos de passagem. Então, se algum homem quiser ir buscar na fonte, digamos assim, pode ir. Aqui o Brasil é um país muito abençoado, porque a gente tem mais de 200 etnias indígenas ainda vivas. Também conheço muitos irmãos indígenas que vivem nas grandes cidades e que fazem esse trabalho. Então a gente tem esse acesso fácil.
E existem organizações como a própria Jornada Solar. Nós não somos indígenas, mas a gente bebeu dessa cultura, estudou, fizemos outros ritos de passagem e a gente oferece os nossos próprios ritos. A gente faz cerimônias de conexão com os elementos da natureza, com vários facilitadores guiando esse processo para que os homens possam viver essa ritualística de uma maneira, digamos, mais contemporânea, mais moderna, vinculando a essência daquilo que é o rito de passagem, que é você se separar do seu mundo comum, viver um momento de transição muito forte para depois se reintegrar. Então você não precisa ir necessariamente para a Amazônia para viver um rito de passagem.
O que você considera um homem saudável?
Um homem saudável precisa, em primeiro lugar, ter um corpo saudável. Ele precisa cuidar da sua alimentação e da água que ele toma. É um homem que precisa também ter uma saúde emocional. Então, a gente precisa cuidar das palavras que a gente fala. Tem uma metáfora que eu gosto muito: se no final do dia tudo aquilo que você falou alguém falasse de volta para você, como que você se sentiria? Então, cuidar da sua saúde emocional – cuidar como você expressa as suas emoções através das suas palavras.
E você estar conectado com a sua fé, seja através da sua religião, seja através da sua espiritualidade, como for. Já entrei em contato com diversos ensinamentos espirituais e todos eles falam a mesma coisa: que é para você meditar, que é para você cuidar das suas palavras, ser uma pessoa caridosa, amar a si mesmo e amar o próximo. Então buscar também ter essa saúde espiritual, estar conectado com o divino no seu dia a dia.
E não esquecer que a gente é parte da natureza. Tem um outro nível de saúde que é você conseguir cuidar também da sua sujeira. Por exemplo, compostar o seu lixo orgânico, uma coisa super básica que 90% da população não faz. Se você simplesmente pegar todo o seu lixo orgânico e botar para o caminhão passar, ele vai levar para um aterro, isso gera poluição, gera doença.
Isso está ligado com aquele nosso papo de capitalismo: a gente não vê o fim. A gente não vê nem o início e nem o fim, a gente só vê o meio, que é você usando a coisa. Mas da onde veio isso? Como isso foi produzido e para onde vai esse resíduo que eu esto jogando? Então, isso para mim é cuidar da saúde num âmbito mais integral, você olhar também para as consequências das suas ações a longo prazo.
Quando a gente se der conta que não dá para comer dinheiro, que não dá para beber dinheiro, aí quem sabe a gente se dê conta que a gente precisa compostar o nosso lixo. Que não é só cuidar da minha saúde, não é só ir na academia, eu preciso cuidar também da onde veio esse alimento. Então a gente precisa olhar para a saúde de um ponto de vista um pouco mais amplo, não pensar só no eu.
Link das imagens: <https://www.jornadasolar.site/>
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