Talvez você tenha ouvido falar no levante de mulheres sul-coreanas que estão buscando mais direitos, respeito e dignidade com a máxima de que não querem e não precisam viver com os homens. O que isso quer dizer? Mulheres não deveriam conviver com homens? A luta das mulheres pode ser realizada sem a participação dos homens? Para nos ajudar a entender esse tema, convidei a mestre e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da UFF, Ana Luiza de Figueiredo Souza para essa entrevista inédita. Autora do livro “Ser mãe é f*d@!”: mulheres, (não) maternidade e mídias sociais”, Ana mergulhou no universo do Movimento 4B para construir sua tese de doutorado “Mães de ninguém: imaginários, identidade(s) feminina(s) e marcadores sociais em comunidades on-line de/para mulheres sem filhos”. Confira agora!
Do que se trata o movimento sul-coerano 4B e como surgiu?
Como apresento em minha tese de doutorado, a Coreia do Sul vive o surgimento de uma geração de mulheres que não querem ter filhos, casar nem se relacionar romanticamente com homens, chamado movimento 4B. Os “B”s do movimento se referem aos seus quatro princípios: Bihon (recusa ao casamento heterossexual), Bichulsan (recusa ao parto), Biyeonae (recusa ao namoro) e Bisekseu (recusa às relações sexuais heterossexuais, o que também inclui forte posicionamento contrário a qualquer tipo de estupro praticado por homens contra mulheres). As representantes do 4B reivindicam para si o termo bi-hon, que significa “não se casar, não ter filhos”, em resposta ao termo mi-hon, usado para designar mulheres solteiras ou, em tradução livre, “ainda não casadas”. Ele desponta após o sucesso do romance “Kim Jiyoung, nascida em 1982”, escrito por Cho Nam-Joo e publicado em 2016. A obra fala sobre a gigantesca violência de gênero enfrentada pelas mulheres da Coreia do Sul, que incluem desde o descarte de bebês do sexo feminino pouco após o nascimento nos anos 60 (seguido pelo aborto corriqueiro de bebês do mesmo sexo nos anos 80 e 90) até a cultura ainda atual com a tomada das decisões familiares sendo centrada na figura do homem mais velho da casa, mesmo que as mulheres sejam as que mantêm a família e o lar funcionando.
O movimento articula protestos on-line e presenciais e uma de suas manifestações mais emblemáticas aconteceu na capital Seoul, em 2018, quando, ao longo de 33 horas, diferentes participantes subiam a um palco para relatar as experiências violentas que sofreram por serem mulheres.
2. Pontua-se que esse movimento não teria relação com o feminismo pois não busca igualdade entre os gêneros ou combater o patriarcado, mas rejeita qualquer relação com homens. Como isso se daria na prática?
Pelo contrário. O Movimento 4B sul-coreano pode ser enquadrado como um movimento feminista porque elas estão advogando mais direitos, qualidade de vida e respeito às mulheres por meio de políticas públicas. Ele seria visto como radical não porque ele tem premissa de evitar contato com homens, mas porque é um movimento que não os prioriza. Por exemplo, o movimento 4B não está preocupado com a desconstrução da masculinidade estabelecida pelo patriarcado.
É um movimento de mulheres que olham para as mulheres. Quais são as demandas das mulheres? Como a gente melhora a vida das mulheres? Os homens que de fato se importam com as mulheres e as valorizam vão se adequar a essas exigências, e a essas mudanças sociais. As mulheres não vão precisar ensinar isso a eles ou incentivá-los.
Na verdade, muitos homens sabem o que as mulheres passam e o que precisa ser feito. Eles apenas não se importam. O movimento 4B não existe para que eles sejam convencidos a lutar junto com elas.
3. Muitas lutas feministas desembocam em políticas públicas que ajustam, em equidade, os direitos de homens e mulheres. Esse movimento tem discutido aspectos nesse sentido? Projetos e/ou leis com base no conceito em que se embasa?
O Movimento 4B emergiu como uma oposição à cultura patriarcal sul-coreana em que a mulher/mãe é designada como a pessoa que rege a casa e cuida da família, dos pais e dos sogros. Porém, o esposo é a pessoa que dá a palavra final. O 4B questiona essas premissas tradicionais, por exemplo, o fato de os termos para designar mulheres solteiras ou sem filhos serem “aquela que ainda não casou” e “aquela que ainda não teve filhos”. Ele é mais um movimento de contracultura, que questiona e rompe com essa realidade, mais do que voltado a políticas públicas. É claro que o debate tem se ampliado e logo vai chegar em ferramentas sociais que as mulheres podem usar para sair desse lugar tradicional. A partir daí, vão começar a entrar discussões sobre leis, o papel do Estado e de políticas públicas.
4. Diante de certas diferenças culturais entre o Brasil e a Coreia do Sul, é possível corresponder ideias desse movimento para a realidade da mulher brasileira? Existe algo dentro do país sendo movimentado nesse sentido?
Como o patriarcado branco se espalhou no mundo inteiro, sempre haverá semelhanças entre o que as mulheres passam em diferentes países. O Brasil é um país conservador e reacionário, como ficou claro com os acontecimentos dos últimos anos. Essas imagens do papel tradicional da mulher como esposa, dona de casa e mãe se assemelham muito nos discursos sociais do Brasil e da Coreia do Sul. E se assemelham também a uma movimentação por parte das mulheres de querer romper com essas ideias e moldes. Acredito que o 4B se relaciona com um movimento global de mulheres que, em décadas recentes, aumentaram sua escolaridade, se tornaram mais presentes no mercado de trabalho e, por isso, apreciam ter/expandir seus direitos. Isso as deixa avessas à possibilidade de retornar ao lugar de submissão e dependência de uma figura masculina. Lugar este que, convenhamos, é mesmo muito perigoso para as mulheres. Elas percebem que a parte masculina ficou muito acomodada. Criaram a consciência de que não precisam dos homens, a não ser que eles cheguem para somar e que estejam no mesmo nível delas. O Movimento 4B se encaixa nessa percepção.
No Brasil, algo semelhante acontece com o fenômeno do celibato voluntário, em que algumas mulheres decidem que não vale a pena terem relações íntimas com homens quando eles deixam a desejar.
5. O movimento 4B apresenta também fragilidades internas por diferenças ideológicas como questões relacionadas à possibilidade de convivência e amizade com homens ou a inclusão de mulheres trans. Quais caminhos esses debates têm tomado?
O 4B é um movimento muito novo, que teve uma rápida projeção global e uma enorme adesão, levando a alguns desafios nos diálogos sobre estratégias para suas demandas. Sobre a convivência com os homens, conforme comentei anteriormente, o movimento não se volta para eles, eles não estão em suas pautas. Os que forem dignos de acompanhar o processo de evolução serão recebidos. Porém, o que as mulheres do movimento pontuam é que a maioria dos homens não apoia o fato de mulheres cuidarem de si, de serem sujeitos de suas histórias, e buscarem seus direitos. E mesmo que as mulheres do 4B procurem esse afastamento do masculino sem precisarem explorar ou subjugar os homens (essa é uma diferença importante em relação ao que o patriarcado faz!), ainda assim a tendência é que eles não vejam essas mudanças do paradigma feminino com bons olhos, por estarem mais inclinados a uma postura reacionária.
Então, de fato, não existe rejeição para a convivência com os homens. Se for alguém que se alinhe a essa mulher, ele será bem-vindo, apesar do fato de que, na conjuntura em que vivemos, não há igualdade real entre homens e mulheres. Acho que não se trata de uma pressão para evitar a todo custo a relação com homens.
O que o movimento denuncia é que aqueles que são realmente aliados à causa e que não querem continuar explorando mulheres são tão poucos que acaba que não há tanta convivência com as mulheres progressistas.
6. Uma relação entre as ideias do movimento é a questão da maternidade como uma escolha a ser descartada diante da configuração patriarcal, com a falta de rede de apoio, poucos direitos e obstáculos na vida profissional. Seus estudos endereçam muito a questão das não mães pelo Brasil e pelo mundo. O movimento 4B tem contribuído nessa discussão?
Eu particularmente considero que a maternidade é uma temática que caminha com a luta feminista, especialmente se você observar o histórico de reinvindicações das mulheres. O movimento 4B possui uma particularidade nesse sentido. A maioria das mulheres sul-coreanas que faz parte dele não são mães e não querem ser mães por motivos pessoais ou por motivos mais amplos, como questões sociais e políticas. São mulheres jovens, em idade reprodutiva, que não têm e não querem ter filhos. Elas lutam por qualidade de vida e direitos sociais simplesmente por serem mulheres, sem necessariamente estarem associadas à maternidade. Elas apontam que não precisam ser mães para que a justiça seja feita e questões sejam reparadas. Nesse ponto, é extremamente interessante ver os desdobramentos que isso pode ter e como eles podem ressoar em outras lutas pelo mundo.
Mostra que as reivindicações das mulheres não precisam ser ligadas à maternidade, à família ou ao lar. Elas querem deixar claro que as mulheres são sujeitos completos que merecem ter suas necessidades validadas.
Isso é tão grande na Coreia do Sul que creches e berçários têm sido fechados no país devido à baixa taxa de natalidade. São mulheres que mostram que não estão dispostas a dar continuidade a dinâmicas que não as contemplam. Mesmo com o governo tentando convencer a população feminina, por meio de políticas de apoio e até suporte financeiro, essas mulheres do movimento 4B querem mostrar outra mulher sul-coreana, uma que nunca existiu, à parte dos papéis de esposa e mãe de família, como uma ruptura dos papéis tradicionais. Quem sabe isso vai ajudar a sociedade como um todo a pensar em outras formas de lidar com esse déficit da natalidade, sem necessariamente apelar para a estrutura das famílias nucleares. Precisamos ficar de olho nesse movimento 4B para ver quais mudanças ele pode trazer para o mundo.
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