IDENTITARISMO: O Novo Rosto (bem maquiado) da Direita
- Everton Nery

- 31 de out.
- 4 min de leitura

Nos últimos anos, uma palavra começou a aparecer com mais frequência em debates políticos, notícias e redes sociais: identitarismo. Mas o que ela realmente significa? De onde vem essa ideia e por que ela está tão ligada ao avanço da extrema direita mundial? Essas perguntas são respondidas com profundidade no livro Tambores à Distância: Viagem ao Centro da Extrema Direita Mundial, do historiador e ativista britânico Joe Mulhall. A obra é resultado de anos de investigação direta, nos bastidores de movimentos radicais ao redor do mundo, uma espécie de viagem ao “coração das trevas” da nova ultradireita global. Aqui faço uma manifestação de gratidão a Rudá Ricci pela indicação dessa leitura, pertinente e esclarecedora.
Diferente do fascismo clássico, o identitarismo tenta parecer mais “aceitável”. Em vez de falar abertamente sobre supremacia racial, seus defensores preferem o discurso da “preservação das identidades culturais”, o que, na prática, significa defender a separação entre os povos e combater a imigração, especialmente de não brancos e muçulmanos. Esse tipo de discurso tem raízes intelectuais na Nova Direita francesa dos anos 1960 e 70, com figuras como Alain de Benoist. O movimento se organiza em torno de uma ideia central: cada povo deve viver em seu “próprio espaço”, e misturar culturas seria algo prejudicial. Parece mais moderado? Pode até soar assim, mas, como Mulhall mostra, é só uma forma mais polida de racismo e xenofobia.
Mulhall percorre vários países em sua investigação e encontra uma verdadeira rede internacional de grupos identitários, conectados por símbolos, estratégias e objetivos comuns. Organizações como Génération Identitaire (França), Identitäre Bewegung (Alemanha) e até coletivos nos EUA e Brasil compartilham uma estética jovem, moderna e digital, o que ajuda a atrair novos adeptos.
Essa nova extrema direita não se veste como skinhead, mas como influencer. Faz vídeos bem produzidos, memes virais e discursos sedutores sobre “proteger a cultura” ou “defender a civilização ocidental”. Mas o conteúdo, segundo Mulhall, é profundamente tóxico: por trás da fachada, está uma agenda que nega a diversidade, reforça desigualdades e alimenta o ódio.
Uma das ideias mais perigosas promovidas por identitários é a teoria da “grande substituição”, ou seja, a noção conspiratória de que populações brancas estão sendo "substituídas" por imigrantes, como parte de um plano deliberado. Essa teoria, que já circula em fóruns online há anos, saiu do mundo virtual direto para manchetes trágicas. Mulhall aponta como atentados em Christchurch (Nova Zelândia) e El Paso (EUA) foram motivados por essa crença. Em ambos os casos, os atiradores citaram explicitamente o medo da substituição demográfica como justificativa para seus atos de violência.
Se engana quem pensa que o identitarismo é uma invenção europeia distante da nossa realidade. Embora suas origens estejam ligadas à Nova Direita francesa e aos think tanks da extrema direita europeia, suas ideias atravessaram o oceano e encontraram terreno fértil no Brasil, sendo adaptadas ao nosso contexto social, político e cultural. No Brasil, o discurso identitário de extrema direita ganha força principalmente a partir da década de 2010, impulsionado pelas redes sociais, canais do YouTube e uma reação organizada contra o avanço das pautas progressistas, como os direitos das mulheres, dos povos indígenas, da população negra e da comunidade LGBTQIAP+.
Em vez de falar em “preservar a identidade europeia”, tal como fazem os grupos identitários na França ou Alemanha, aqui o discurso gira em torno de frases como: “Estão destruindo nossos valores cristãos.”; “O Brasil está virando uma ditadura gay/feminista/indígena.”; “Somos vítimas do politicamente correto.” “Não se pode mais ser homem branco hétero.” Essas falas, muitas vezes mascaradas de "liberdade de expressão", reproduzem a mesma lógica do identitarismo europeu, só que tropicalizada: uma defesa seletiva da "identidade nacional" que, na prática, nega o caráter plural do Brasil e tenta apagar vozes historicamente marginalizadas.
Assim como Joe Mulhall alerta em Tambores à Distância, os identitários brasileiros não se apresentam como extremistas caricatos, mas como “patriotas”, “conservadores” ou “cidadãos de bem”. Muitos influenciadores da extrema direita brasileira, em canais do YouTube, podcasts e perfis no Instagram e TikTok, atuam como pontes entre o público jovem e discursos radicais.
Eles adotam uma linguagem visual moderna, memes, humor e referências da cultura pop para difundir teorias como: O “marxismo cultural” (uma ideia conspiratória sem base real); A “doutrinação nas escolas”; A “ideologia de gênero”; A ameaça da “esquerda globalista”. Esses discursos têm forte inspiração no identitarismo internacional, e muitos dos influenciadores brasileiros reproduzem literalmente falas, livros e teorias de grupos como o americano Alt-Right e o francês Génération Identitaire.
Embora a ideia da “grande substituição” (de brancos por imigrantes) não se encaixe perfeitamente no contexto brasileiro, uma versão local desse medo identitário aparece na forma de um temor irracional de que movimentos sociais estejam “tomando conta” do país. Esse discurso costuma vir acompanhado de frases como: “O MST quer invadir tudo.”; “Indígenas estão ganhando mais direitos do que os brasileiros de verdade.”; “Agora tudo é racismo, tudo é vitimismo.” Essas narrativas alimentam um sentimento de perda de controle, de ameaça à identidade nacional tradicional, exatamente como descrito por Mulhall ao analisar os movimentos identitários europeus. É a mesma lógica, apenas com personagens diferentes.
O identitarismo no Brasil não é apenas um discurso isolado na internet. Ele tem influenciado políticas públicas, eleições e decisões de governo. Durante os últimos anos, vimos ministros da educação que combateram a universidade pública, cortes em políticas de igualdade racial, ataques sistemáticos à cultura e à ciência e um crescimento alarmante de discursos de ódio. Tudo isso mostra que não estamos imunes ao avanço da extrema direita global, e que os tambores que soam à distância, como diz Joe Mulhall, também ecoam por aqui, e às vezes mais perto do que imaginamos.
O identitarismo brasileiro é mais do que uma imitação. Ele é uma versão local de um fenômeno global, que se alimenta do medo, da desinformação e do ressentimento social. Ele se apresenta como defesa da tradição, mas ataca a diversidade. Finge ser sobre liberdade, mas promove exclusão. Por isso, reconhecer seus sinais é fundamental para construir uma sociedade verdadeiramente democrática, plural e justa.
IMAGEM: IMDb



Se tranta de texto muito necessário, que revela com precisão como o identitarismo funciona como a face “palatável” de um projeto profundamente excludente. Ao mapear suas raízes europeias e sua adaptação ao contexto brasileiro, o autor evidencia que não se trata de mera opinião política, mas de uma estratégia global de captura simbólica, que transforma medo e ressentimento em discurso público. A leitura mostra, com clareza, que por trás da retórica de tradição e liberdade há um ataque direto à pluralidade e à democracia e que reconhecer esse mecanismo é o primeiro passo para desarmá-lo.
O texto mostra que o identitarismo não se apresenta mais com símbolos explícitos de ódio, mas com uma estética “clean” e linguagem jovem. O texto traz também um ponto crucial, que é a ideia da “grande substituição”. Essa teoria conspiratória tem um poder enorme de mobilização emocional. É impressionante como ela consegue se infiltrar em diferentes países com narrativas adaptadas a cada um.
As frases citadas revelam preconceitos e a sensação de ameaça à identidade nacional tradicional.
O autor observa que, no Brasil, o medo identitário assume uma forma adaptada, voltada contra movimentos sociais e minorias.
Há uma forte influência internacional nesses discursos, principalmente da extrema direita europeia e americana.