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INFÂNCIA (POBRE) VULNERÁVEL, MORALISMO CANHESTRO, E CIVILIZAÇÃO EM RETROCESSO: O Saldo de uma Votação


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Na quarta-feira da semana passada (05/11), a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) que suspende a Resolução nº 258 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). O texto, aprovado sob intensa pressão das bancadas religiosas, interfere diretamente na aplicação prática do aborto legal em meninas vítimas de estupro — direito garantido no Brasil desde 1940.


A medida, formalmente, não revoga o Código Penal, mas tem efeito performativo e simbólico. Performativo, porque busca saciar o eros insaciável de grupos mobilizados pelo tema; simbólico, porque abre brechas para o cerceamento do direito à informação e envia um recado claro às instituições de saúde e justiça de que o Estado brasileiro recuou na proteção de suas crianças mais vulneráveis. Realmente, a Geni está de parabéns.


Sob perspectiva mais ampla, o movimento político integra uma tentativa gradual de eliminar toda e qualquer possibilidade de aborto legal. Três anos atrás, a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou a jurisprudência do caso Roe v. Wade (1973). Essa tendência não se limita a um debate moral ou religioso; é expressão de uma regressão mais profunda, ligada ao refluxo dos movimentos civilizatórios que, nas últimas décadas, buscaram ampliar a autonomia e a proteção social das mulheres.


Em sentido amplo, o processo civilizador consiste em um longo

movimento em que impulsos violentos e imediatos são gradualmente submetidos ao controle da razão — tanto no plano individual quanto no coletivo. A sociedade “civilizada” é aquela que aprendeu a conter, isto é, transformar o poder bruto em norma, o instinto em compostura, o medo em prudência. Esse processo não teria sido possível sem o surgimento do Estado moderno e seu ideal iluminista de submeter os impulsos privados à mediação racional e legal.


No entanto, a estrutura social brasileira revela uma interrupção — ou, ao menos, um atraso — desse processo. O que Norbert Elias chamou de “avanço do patamar de vergonha e nojo” ainda encontra resistência em sociedades em que a desigualdade e a precariedade corroem as bases do autocontrole civilizatório. É difícil encontrar uma família sem relatos de antepassadas obrigadas a casar antes dos quinze anos. Na minha própria linhagem, basta retroceder três gerações para encontrar a bisavó levada à força, aos treze. Em um país em que o passado insiste em ter futuro, tal relato deveria causar repugnância — mas, ao que parece, não em todos.


Num Estado que, como descreveu o Visconde do Uruguai, é “excessivamente centralizado, mas de pouca penetração nos rincões”, decisões como a da Câmara reduzem ainda mais a capacidade estatal de proteger o indivíduo. Disfarçada de respeito à autoridade dos pais, a medida significa um retorno à tribalização moral: substitui o direito pela crença, o juízo pela fé. Quando a convicção pessoal se torna critério absoluto, já não é convicção — é teologia.


A medida política tampouco se dissocia das práticas sociais. No mesmo dia da votação, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que quase 34 mil crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos vivem em união conjugal no país, apesar da proibição legal de casamentos antes dos 16. Na maioria dos casos, são meninas com homens mais velhos — fenômeno que evidencia o quanto a “domesticação dos impulsos”, no sentido eliasiano, ainda é incompleta no Brasil. Esses casamentos infantis são vestígios de uma civilização interrompida, em que a dominação masculina se perpetua sob o verniz da normalidade.


O processo civilizatório não é linha reta, tampouco conquista definitiva. É frágil e exige manutenção constante — sobretudo no campo político. Por isso, o debate público sobre o aborto precisa recuperar o pragmatismo e deslocar o eixo moral para o campo das políticas de proteção e saúde pública. Ficou claro de discursos como “meu corpo, minhas regras”, do ponto de vista político, se mostram inócuas num público mais amplo. Calma, leitor, eu concordo com a tese, mas na política e no campo de disputas simbólicas, a parte estética é importante: deslocar o argumento não significa mudar o conteúdo, mas sim deslocar a ênfase e dar-lhe nova roupagem. Reestruturar o discurso não é diluir o conteúdo — é garantir que a mensagem alcance o ouvido social disposto a ouvir.


O ponto central é simples: o aborto legal é uma questão de saúde pública, econômica e educacional, e não um capricho ideológico. A vulnerabilidade das crianças e adolescentes brasileiras expõe um marcador brutal de classe social: meninas ricas interrompem gestações, meninas pobres as carregam. A gravidez precoce empurra milhares de jovens para a evasão escolar e para a pobreza. Decisões como a da Câmara têm cor e classe — e delas ninguém duvida.


A estratégia mais eficaz é mostrar que, em mais de 60% dos casos, o agressor é alguém do círculo familiar. A Resolução nº 258 do Conanda buscava justamente reduzir essa tortura institucional e assegurar que o Estado não revitimizasse quem já foi violentado. A sua suspensão, portanto, não é apenas retrocesso legal, mas ruptura civilizatória.


Há quem reaja a essa barbárie denunciando o conservadorismo que domina o país. É verdade. Mas é a sociedade que temos — e dela não se deve desistir. Ao contrário, é preciso aperfeiçoá-la, civilizá-la continuamente, para que as próximas gerações escapem da herança cadaverosa da violência simbólica e moral que molda nossas estruturas. O verdadeiro conservadorismo não perpetua a dor: preserva a família protegendo suas crianças.


Termino com um poema de Torquato Neto:


É preciso que haja alguma coisa

alimentando o meu povo;

uma vontade,

uma certeza, uma qualquer esperança.


É preciso que alguma coisa atraia a vida

ou tudo será posto de lado

e, na procura da vida,

a morte virá na frente

e abrirá caminhos.


É preciso que haja algum respeito

,ao menos um esboço,

ou a dignidade humana se afirmará

a machadadas.



Referências bibliográficas


BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.BRASIL. Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940).CONANDA. Resolução nº 258, de 15 de fevereiro de 2024.ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol. 1. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.


_____. O processo civilizador: formação do Estado e Civilização Vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

G1. Câmara aprova projeto que pode dificultar aborto legal em crianças vítimas de estupro. G1 Política, Brasília, 5 nov. 2025. Disponível em:https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/11/05/camara-aprova-projeto-que-pode-dificultar-aborto-legal-em-criancas-vitimas-de-estupro.ghtml. Acesso em: 6 nov. 2025.


G1. 34 mil crianças e adolescentes vivem em união conjugal em SP; lei proíbe casamentos de menores de 16 anos. G1 São Paulo, São Paulo, 5 nov. 2025. Disponível em:https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/11/05/34-mil-criancas-e-adolescentes-vivem-em-uniao-conjugal-em-sp-lei-proibe-casamentos-de-menores-de-16-anos.ghtml. Acesso em: 6 nov. 2025.


1 comentário

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Caio
17 de nov.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

ótima analise, é necessário trazer o debate para o campo da saúde pública para reduzir as brechas que impedem sua amplificação através dos discursos de ódio já atrelados ao moralismo

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