Pessoa 1: Bolsonaro está acabando com a economia
Pessoa 2: Mas e Lula? Quando era Lula ninguém dizia nada
Pessoa 1: O que acontece na Ucrânia hoje é um massacre
Pessoa 2: Mas e a invasão do Iraque em 2003? Quando aconteceu ninguém disse uma palavra
Pessoa 1: 0s policiais são racistas e estão usando de muita violência nas ruas
Pessoa 2: Mas e o caso da menina esfaqueada por um marginal que roubou seu celular? Aí pode...
Pessoa 1: O mundo está chorando pelos ucranianos
Pessoa 2: Mas e a invasão da Somália e suas mortes? Quando aconteceu não vi ninguém chorando
O whataboutism é uma palavra norte-americana que fez parte do vocabulário dos últimos anos, principalmente depois de 2016 com a campanha de Donald Trump nos Estados Unidos. Embora pareça esquisita, até mesmo difícil de traduzir, ela indica uma prática muito familiar nos circuitos de debates, artigos e aulas, ou seja, no campo retórico em geral. Não importa se falamos de esquerda ou de direita, ela é um fenômeno recente que estabelece a forma como discursos políticos e acadêmicos são estruturados. Isso significa, portanto, que o whataboutism não é um simples conteúdo, muito menos uma pauta política específica, mas uma forma de organizar as ideias e estruturar a própria linguagem.
No fundo, ela é uma continuidade do argumento ad hominem, ao criar bombas de fumaça retóricas que tiram o foco do problema, quase sempre apontando a hipocrisia do adversário. Ao invés de se voltar para o argumento principal, indivíduos desviam o foco numa busca alucinada por exceções. O whataboutism não necessariamente é falso, no sentido dos fatos que mobiliza, já que pode ser verdadeiro em suas acusações. O problema, por esse motivo, não é epistêmico (verdade ou falsidade), mas sim estético, ao ser um gesto performático, ao mesmo tempo que um truque retórico barato.
É preciso deixar claro que o whataboutism não é um desvio de caráter, apenas encontrado em certas criaturas ou grupos, mas um tipo de comportamento que pode aparecer em qualquer lugar, em qualquer um, até mesmo em mim, o autor desse ensaio. Essa estratégia é muito mais um sintoma do que uma manobra deliberada, um mecanismo de defesa diante de circunstâncias que nos ultrapassam.
John Oliver, em seu programa “Last Week Tonight”, definiu whataboutism da seguinte forma:
“o motivo dele ser perigoso é que supõe que toda ação, não importa o contexto, compartilha de uma equivalência moral. E já que ninguém é perfeito, toda crítica é hipócrita e todo mundo deve fazer o que quiser. É uma ferramenta lamentavelmente eficaz”.
Qualquer um pode, em qualquer circunstância, mobilizar o whataboutism como ferramenta retórica, desde que tenha alguma exceção guardada no bolso. Em termos mais empíricos, o whatbaoutism nunca responde ao que é perguntado, nunca se volta ao núcleo argumentativo principal, quase como um tipo de distração, muitas vezes até uma espécie de truque de mágica. “Sem dúvida, Lula pode ter feito algo horrível em seu mandato, amparado pelo silêncio da mídia e das próprias redes sociais, mas isso retira a responsabilidade de Bolsonaro hoje?”. Da mesma forma, “sem dúvida, outras tragédias no passado não foram documentadas como deveriam ser, mas isso retira o peso da crise que acontece na Ucrânia?”
O whataboutism, como desdobramento da estrutura ad homimem, normalmente é mobilizado quando faltam fontes sólidas, específicas e consistentes que reforcem a crítica. Como um tipo de estratégia desesperada, o que ocorre é uma tentativa de tirar o foco do problema principal, concentrando em possíveis exceções que tenham acontecido no passado, podendo ser fatos reais ou mesmo mentiras. Isso significa que trazer a invasão dos EUA no Iraque em 2003, ou o bombardeio da Somália em fevereiro de 2022, além das milhares de bizarrices feitas pela OTAN, apontando assim a atitude hipócrita nos bastidores, supostamente seria uma forma de refletir sobre o que acontece hoje no leste Europeu. Mas será mesmo? Seria esse jogo de equivalências tão óbvia? Como disse no começo, o whataboutism não necessariamente é falso, já que muitas vezes mobiliza argumentos válidos (como a falta de cobertura midiática em certos momentos e não em outros), mas acaba sendo sempre um truque barato, um recurso que apenas tangencia a complexidade do problema, jamais entrando em detalhes.
Todo argumento imaginável pode ser apropriado pelo whataboutism, já que bastam apenas exceções soltas para que invalidem premissas principais. Vamos pegar como exemplo um congresso acadêmico sobre Teoria Social. Imagine que um bourdiesiano levanta o seguinte argumento: "Resumindo, a sociologia praxiológica de Bourdieu trouxe vários ganhos no campo acadêmico, como vocês perceberam ao longo de toda minha palestra. Por isso repito mais uma vez, Bourdieu deve ser lido por todas as pessoas". Imagine agora que alguém responde a esse argumento da seguinte forma: "Mas e Mignolo? Ninguém falou dele nesse congresso. Quando é um autor europeu, todo mundo presta atenção". Observe que o argumento em si é válido, coerente e até eficaz, ao descortinar rastros de hipocrisia no campo acadêmico onde certas figuras tem destaques, enquanto outras não. Mas observe também que essa matriz argumentativa pode ser aplicada a qualquer um, a qualquer circunstância, além de tirar o foco do núcleo do debate: "os argumentos de Bourdieu e sua sociologia praxiológica". O whataboutism é um grande obstáculo quando o assunto é a esfera pública e seus debates de problemas complexos. Ao simplificar ao extremo as coisas, moralizando os temas de forma superficial, todos entram em um circuito sem fim de acusações, queixas e ressentimentos. Nesse jogo ressentido todos perdem, seja a política, a ciência ou até mesmo as conversas informais no fim de tarde.
Referência da Imagem:
https://soniazaghetto.com/2019/08/27/whataboutism/
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