MAS SERÁ O BENEDITO?
- Everton Nery

- há 6 dias
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Antes das palavras, havia o mundo: atrevido, vivo, inteiro. O menino aprendia o barro com as mãos, a mulher escutava o vento com o corpo, e tudo que existia podia ser compreendido apenas por sentir. Depois veio a linguagem, tal qual mapa tentando conter floresta e, entre o sentir e o nomear, algo se perdeu: o susto, o afeto, o brilho primeiro das coisas antes de ganharem rótulo. Mas há pessoas que nunca deixaram de morar poeticamente no mundo, que escutam antes de dizer, que sentem antes de explicar. Benedito da Paixão Santos é desse tipo raro.
Ele sempre entendeu a vida pelo avesso das palavras. Lia a chuva pelos sinais da terra, pescava silêncios e esperança, e carregava no corpo um saber antigo: saber de rio, de mar, de margem. Nas redes que lançava, vinham peixes, mas vinham também sabedorias, risos, histórias contadas com aquela graça de quem quase pescou uma baleia, e talvez tenha mesmo pescado, mas cortou as cordas e libertou um ao outro; uma ousadia! Seu Benedito era homem das beiradas, tanto do mar como do Evangelho. Ele é desses que aprenderam com Jesus a lançar redes do outro lado mesmo quando o mundo parecia mar revolto. Se o vento era contrário, ele seguia no barco, firme, com a fé que não faz alarde.
Marido bondoso, pai amoroso, avô sábio, bisavô encantado, homem inteiro que jamais se deixou dobrar pelas águas sujas do tempo. Sua vida sempre foi canto, pesca, trabalho e oração. Em cada gesto, ele nos lembrava que a fé é o maior anzol que existe, capaz de resgatar vidas, acalmar dores e reacender esperanças. E quando o corpo foi envelhecendo e tendo alcançado brilhantemente os 80 anos, o coração permanecia novo, tendo Deus o sustentasse por dentro na força da promessa: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos.”
Seu nome, Benedito, é carregado de memórias que já vinham de longe. Lá atrás, Benedito Meia-Légua virou lenda porque libertava outros, surgia onde ninguém esperava e desaparecia das mãos da morte como se protegido por santo. Era só o povo perceber um ato de coragem e perguntar: “Mas será o Benedito?” Hoje, quando olhamos para Benedito da Paixão Santos, repetimos a pergunta com ternura e espanto, não porque ele tenha vindo da guerra, mas porque sua vida também libertou: libertou pela fé, pelo riso, pela presença, por esse jeito simples de amar.
Seu Benedito, cantor alegre, pescador das águas e dos afetos, torcedor apaixonado do Bahia, sempre viveu como quem carrega Deus no peito e o mundo nos olhos. Seus causos atravessam gerações; suas orações sustentam casas inteiras; seu sorriso é daqueles que iluminam a varanda ao cair da tarde. Ele soube sofrer como quem ama, e amar como quem tem Deus por testemunha. Como na canção “Quem É”, de Agnaldo Timóteo, sua vida fala da dor que acompanha todo grande amor, dor que Jesus também conheceu, chorando por amigos, lamentando ausências, vivendo a entrega total. A música vira, para ele, uma pequena teologia da vida comum: ninguém vive sem sofrer por alguém, sem chorar uma lágrima sentida. Mas também ninguém vive sem esperança. E Benedito sempre guardou a esperança como quem guarda uma rede bem dobrada.
Sua fé é a fé do povo, quente, humana, feita de salmos sussurrados, clamores simples e confiança profunda: “Deus, meu Deus, tenha piedade de mim.” Essa oração, que nasce do peito de qualquer pessoa que já amou, sempre encontrou eco em seu modo de crer; não um crer de teoria, mas de caminhada. É fé de pescador, fé de quem fala com Deus como com um velho amigo, fé de quem sabe que o sofrimento acaba na eternidade que se abre como mar sereno.
Como no canto de La Saeta, Benedito não reza para o Cristo imóvel do madeiro, mas para o Cristo que andou no mar, que caminhou com os pobres, que viveu entre pescadores. Cristo das margens, o Cristo que é sua companhia silenciosa. E entre uma história de pescador em suas andanças e lembranças, ele nos ensinou o essencial: antes de falar, escute; antes de explicar, sinta; antes de julgar, ame.
E assim, sua vida inteira se tornou uma canção. Uma canção nascida entre rios, ilhas, barcos, memórias e afetos. Uma canção que o povo reconhece, como reconhece as coisas que vêm de Deus.
Hoje celebramos um homem que honra o nome que carrega. Benedito da Paixão Santos viveu 80 anos enchendo o mundo de fé, coragem e bondade. Ele não incendiou fazendas para virar lenda — bastou amar. Bastou viver com coragem. Bastou ser esse tesouro de ternura, resistência e céu que Deus entregou à sua família.
E por tudo isso, quando olhamos para ele, só conseguimos repetir: “Mas será o Benedito?” Sim. É ele mesmo. Aquele que pesca gente com o olhar, que ora baixinho por cada um de nós, que vive o Evangelho com as mãos. Aquele cuja vida inteira é bênção.
Parabéns pelos 80 anos, Seu Benedito. Que os rios abençoem suas lembranças, que o céu abra espaço para sua alegria, e que Deus continue sendo sua rede, seu barco e sua maré.
Com amor, admiração e gratidão, de todos que têm a graça de caminhar ao seu lado.
IMAGEM: Arquivo Pessoal



Que linda homenagem.