
Descobrir-se deveria ser um motivo de celebração, o abandono público de um espaço de vida minúsculo e sufocante deveria ser acompanhado por abraços e alívios, é assim que a jovem trans do livro Mau Hábito, de Alana Portero, fala sobre como deveria ser o processo de autodescoberta. O sofrimento e a dor deveriam ser substiuídos por afeto e exaltação. Este é o primeiro livro da autora, que também é trans, e ele é uma celebração à escrita e um grito de alerta sobre essa passagem que muitas vezes é dura. Atenção: pode haver spoiler durante este texto.
A autora constrói uma narrativa em primeira pessoa onde mescla pensares por onde permeiam a mitologia, a música pop, o cinema e a política. A jovem que vai se descobrindo trans e a quem chamo por um dos nomes amorosos do livro, Sempre, reflete sobre os anos 80 de uma Madrid pós-Franco e marcada pelo preconceito, heroína e pobreza. Moradora de um bairro proletário, com uma família que substituiu o afeto, não o amor, pelo trabalho para sobreviver, Sempre vai descrevendo com riqueza de detalhes a situação sócio-econômica, assim como os seus anseios e angústias pelo não respeito às mulheres.
Sempre é uma adolescente que experimenta não vivenviar esta fase como uma menina da sua idade. Acha-se estranha, não gosta do seu corpo e obriga-se a viver uma masculindade que não concorda e a agride. A inspiração é seu pai, seu irmão mais velho, um tio e outros homens. É triste vê-la indo assistir ao clássico Real Madrid x Barcelona, o sufoco que vivencia em estar em um lugar que tem ojeriza.
Mas é também dentro desse universo de angústia que a autora nos leva ao encontro de mulheres incríveis que são inspiração para Sempre. Em muitos momentos essas mulheres fazem parte do título dos capítulos. São mulheres trans ou não que fazem Sempre acreditar em si, que através dos seus exemplos mostram como não será simples sua “saída do armário” – algo que ela fala todo o tempo –, mas que há beleza nas roupas, maquiagens, na delicadeza, no respeito, nas conversas femininas e na sensibilidade.
Esse seria o oásis no livro de Alana. Ela nos leva como em uma gangorra a experimentarmos momentos duros, como a agressão que a personagem sofre (um dos momentos mais difíceis da minha leitura) ou quando tem os encontros com Margarida e Eugênia, travestis, e seu primeiro amor, Jay. A autora vai tecendo as palavras com tanta poesia e crueza, que é possível vivenciarmos uma espécie de montanha-russa de emoções. Sente-se raiva, amor, revolta, vontade de chorar, ódio, entre tantos outros sentimentos e emoções.
É uma literatura que não deixa de ser política. Ali está de forma escandarada a dor de uma adolescente trans, os desejos suicidas, os sonhos arrancados, a falta de esperança, o estigma social da masculinidade que aborta tantos viveres possíveis. Alana não quis ser pueril ou romântica, ela é inteira, fala como quem sabe o que viveu e vive. Deveria ser um livro a ser adotado em escolas e universidades, mexeria com muitas questões, mas ensinaria. Até mesmo porque não se aprende sem o incômodo de se autoquestionar.
Mergulhe em Mau Hábito, conheça Alana e experimente no seu corpo e na sua mente a vida de Sempre. Ser homem, ser mulher, não ser nenhuma das duas coisas, é algo que não se pode experimentar nem construir a sós, diz a personagem. Nós somos a partir do momento em que estamos no coletivo. Esta vivênvia social constrói e também nos aniquila. Ler este livro nos auxilia a abrirmos nossos olhos a este coletivo. O mundo vai muito além do que achamos ser “o nosso mundo”. Leia e se quiser se antecipar, vá ouvindo a trilha sonora do livro ofertada por Alana: https://open.spotify.com/playlist/0gQEfjdfg1iInLPl5JPoho?si=ebb9dc333c864563
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