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MILAGRE E NATUREZA


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Tradicionalmente, o conceito de milagre tem sido compreendido dentro de uma matriz teológica que o situa como um evento extraordinário, uma suspensão ou violação das leis da natureza em razão de uma intervenção divina direta. Contudo, essa concepção, fortemente marcada por um paradigma sobrenaturalista e por uma lógica dualista entre o natural e o divino, não é a única possível. Dentro de uma teologia libertadora, que busca uma leitura imanente e encarnada do agir de Deus no mundo, é possível reinterpretar o milagre não como ruptura da ordem natural, mas como manifestação profunda e radical dessa própria ordem, cuja origem é o próprio Deus.


A teologia da libertação propõe uma hermenêutica da realidade concreta dos pobres, dos excluídos e da terra, reconhecendo que Deus atua na história e na criação não por meio de espetáculos celestes, mas na dinâmica libertadora dos processos históricos e naturais. Como afirma Leonardo Boff (1993), “Deus se manifesta na vida e na história como força de libertação, e não como um ser que intervém de fora do processo” (Boff, 1993, p. 127). Assim, a leitura do milagre se desloca do campo do impossível para o campo do possível inesperado, do que ainda não compreendemos plenamente dentro da complexidade das leis da natureza e da vida.


Neste horizonte, o milagre é expressão do mistério que permeia o mundo criado, e que opera segundo leis que, embora conhecidas em parte pela ciência, mantêm uma profundidade que remete ao sagrado. O filósofo e teólogo Raimon Panikkar (2014, p.84) adverte: “O milagre não é uma violação das leis naturais, mas uma manifestação de dimensões mais profundas da realidade, ainda não compreendidas.” Essa afirmação reforça que a leitura dos milagres como suspensão da razão ou da natureza é própria de um modelo que separa o mundo do espírito e o mundo da matéria, enquanto uma perspectiva integradora compreende o mundo natural como sacramento do divino.


Neste sentido, a concepção de milagre pode ser ressignificada como o momento em que a ordem natural, muitas vezes ignorada em sua profundidade, revela uma potência de transformação, de cuidado, de superação que parecia impensável. Isso é particularmente importante numa teologia que assume a vida como valor supremo. Como escreve Rubem Alves (1984, p.101): “Milagre é quando o impossível acontece dentro da normalidade da vida.” O que Alves propõe não é a negação do milagre, mas sua reconfiguração: o milagre não está fora das leis da vida, mas é a vida em seu esplendor, em sua capacidade de surpreender, de resistir, de se reinventar.


Deus, na teologia libertadora, é o Deus da vida, e como tal, sua ação se realiza nos processos da própria criação. O Concílio Vaticano II reconhece isso ao afirmar que “a fé cristã não exige que rejeitemos as descobertas das ciências, mas que vejamos nelas um caminho legítimo de conhecer a verdade que vem de Deus” (VATICANO II, Gaudium et Spes, n. 36). Essa afirmação implica que o conhecimento científico das leis naturais não se opõe à fé, mas é parte do milagre da razão humana e da própria criação.


Assim, o milagre pode ser compreendido como a capacidade de reconhecer, nas dinâmicas naturais e históricas, a presença do divino que age de forma sutil, mas eficaz. A cura de uma doença, por exemplo, não seria um milagre porque contraria as leis da biologia, mas porque manifesta, na ação do sistema imunológico, da medicina, do cuidado, uma força maior de vida que transcende e inclui todos esses elementos. Nesse sentido, como propõe Teilhard de Chardin (2002, 2002, p.91), “nada é profano neste mundo; tudo é sagrado, porque tudo é criação em processo, e o milagre é o olhar que reconhece essa sacralidade.”


Portanto, defender o milagre como algo que ocorre segundo as leis naturais não reduz sua importância, mas a eleva. Implica reconhecer que o mundo não é uma máquina cega, mas um tecido vivo de relações onde Deus age através do que é. O milagre não seria, então, a suspensão da ordem natural, mas a epifania do divino no ordinário, a flor que resiste ao deserto, o gesto de solidariedade que rompe a indiferença, a vida que renasce entre os escombros da morte. A teologia libertadora vê aí o verdadeiro milagre: a natureza, em sua radicalidade, sendo instrumento da libertação.


Referências


ALVES, Rubem. O Enigma da Religião. São Paulo: Paulinas, 1984.


BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder. Petrópolis: Vozes, 1993.

CHARDIN, Teilhard de. O Fenômeno Humano. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 2002.


PANIKKAR, Raimon. O Espírito da Palavra. São Paulo: Paulinas, 2014.


VATICANO II. Gaudium et Spes – Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Atual. In: Documentos do Concílio Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 2000.


IMAGEM: Portal da Diocese de Bragança Paulista

2 comentários

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Joseval Barbosa
14 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Maravilhosas reflexões sobre o Milagre.

O Milagre é o agir da Divindade em leis, imutáveis e soberanas, desconhecidas pela humanidade.

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Convidado:
14 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

👏👏👏👏

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