NEUROCIÊNCIA E CiÊNCIA SOCIAL: um olhar mais complexo sobre o Programa Bolsa Família
- Alan Rangel
- 30 de ago.
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Recentemente, foi divulgada uma pesquisa sobre o Programa do governo federal brasileiro, o Bolsa Família, afirmando que uma em cada duas famílias deixam a força de trabalho. O FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas) conduziu tal estudo sob a orientação do pesquisador Daniel Dunque. Ele analisou os efeitos do Programa após a ampliação do valor médio do benefício, aumentando para cerca de R$ 670 em 2023. O grosso desse resultado foi a faixa etária de 14 a 30 anos, com concentração nas regiões Norte e Nordeste.[1] Uma fatia importante que impede alguns jovens de acessar o primeiro emprego, sobretudo na adolescência.
A reação mais natural do senso comum e de oportunistas de plantão: “tá vendo aí, o povo já não gosta de trabalhar... se aproveitam da mamata”. “Muito vagabundo aí, mal acostumado esses nordestinos”. Ou ainda: “esse programa é politiqueiro, só interessa para os políticos continuarem se reelegendo. Nada muda”.
Nas importantes palavras de Dunque a CNN: “Temos evidências de que adiar um ano o primeiro emprego formal tem impacto quase tão alto quanto perder um ano de escolaridade. No longo prazo, isso pode reduzir a renda em cerca de 10%”. [2]
Como podemos entender essa situação do ponto de vista da neurociência e da ciência social? Em primeiro lugar, precisamos aproximar aspectos biológicos dos aspectos sociais. É uma dificuldade que os pesquisadores de humanas precisam superar. Por outro lado, os neurocientistas não podem ficar presos a um internalismo estrutural e fisiológico corpóreo. Dito isso, com respeito ao objeto do nosso artigo, as pessoas tendem a ficar em uma certa zona de conforto quando encontram facilidade que lhes poupam esforço. Há uma tendência, natural, de qualquer corpo, de economizar energia. Trabalhar é um dispêndio de força, independentemente se a atividade é manual ou intelectual. Não é uma questão de classe: é uma questão humana e da própria natureza. Qualquer discurso de aporofobia rebaixa a discussão e escala para a xenofobia generalizada.
No caso de famílias de jovens que recebem o Bolsa Família, é necessário ter um estímulo, por parte das autoridades brasileiras, de incentivo ao trabalho formal, com salário superior ao recebido pelo Programa. Regiões mais pobres, com salários desqualificados, em nada incentivam o emprego formal.
Voltando para a Neurociência. Se a sociedade produz automatismos, que desestimulam comportamentos, afetando a percepção da vida do jovem sobre as possibilidades de crescimento profissional e educacional, como a gente quer que as coisas mudem de uma hora para outra? A falta de desejo para trabalhar fortalece circuitos corticais (regiões da massa acizentada mais externa de nosso cérebro) padronizando informações que ficam ali automatizadas e muito difíceis de serem alteradas. Sem estímulo para mudanças no comportamento, os sistemas nervosos dos jovens vão repetir e reforçar o que aprenderam: “não há sentido me esforçar se ganharei pouco”, ou “não há nobreza em trabalhar”. Claro que esses imputs robustecem processamentos neurais que só dificultam qualquer tipo de alteração.
O desafio aqui é fomentar a gênese de novos circuitos neurais no córtex pré-frontal (lobo responsável pela atuação executiva/consciente do corpo) que possibilite reduzir os automatismos, impulsionar novos comportamentos que foram desenvolvidos pela comodidade de viver sem grandes esforços, transformando os velhos hábitos. Mas isso não é somente uma questão racional: alterar hábitos passa também pelo circuito das emoções. O que significa? A vontade de mudar precisa estar alinhada aos afetos. "Depois de automatizados, os circuitos são regidos principalmente pelo sistema límbico, de modo automático e padronizado, e não exigem mais a atuação da consciência”.[3]
A conclusão é de que se faz necessário um afeto mais potente para vencer aquele que já está ali cumprindo um papel de crenças e valores já muito cristalizados. Como nosso cérebro tem uma capacidade excepcional de plasticidade, novos hábitos exigem emoções mais poderosas ainda para suplantar a anterior. Como o governo vai fazer isso? Basicamente através de políticas públicas que estimulem sobre a importância existencial do trabalho; que melhore as condições de salário do menor aprendiz e, também, do salário-mínimo, que é o segundo pior da lista da OCDE[4] e aumente mais postos de trabalho para atender a população jovem. Esse básico já resolveria muita coisa.
Por outro, a classe política, as Forças Armadas e o Judiciário são referências públicas danosas, moral e econômica, para a população, considerando os gastos, penduricalhos e todas as regalias que essa castas estamentais têm custado, historicamente, aos cofres públicos. Com bem menos pessoas atingidas, em comparação com os dependentes do Bolsa Família, a nossa elite brasileira onera, exageradamente, o orçamento do país. A título de exemplo, em 2023, o orçamento com a Defesa Brasileira girou em torno R$124,4 bilhões, sendo que 78,2% foi destinado a despesa com pessoal, com maior concentração para aposentados e pensionistas[5]. Nestes últimos estão o cônjuge ou companheiro designado ou que comprove união estável como entidade familiar; pessoa separada de fato, separada judicialmente ou divorciada do instituidor, ou ex-convivente, desde que perceba pensão alimentícia, filhos ou enteados até vinte e um anos de idade ou até vinte e quatro anos de idade, se estudantes universitários ou, se inválidos, enquanto durar a invalidez; menor sob guarda ou tutela até vinte e um anos de idade ou, se estudante universitário, até vinte e quatro anos de idade ou, se inválido, enquanto durar a invalidez. Ainda há prioridades de segunda e terceira ordem, que pode se estender aos pais e irmãos órfãos.[6]
Assim como sinalizei uma percepção cristalizada do sistema nervoso, difícil de ser alterada, aos que preferem não trabalhar a receber recursos do Bolsa Família, o mesmo vale para aqueles que acreditam que são superiores por serem políticos, juízes ou militares e seus dependentes diretos. Esse é sentimento que deságua em um complexo de superioridade anti democrático e mina qualquer possibilidade de uma atuação republicana sobre os custos que eles mesmos produzem para a sociedade. Essa é uma chaga que é perpetuada culturalmente e merece atenção para ser erradicada. É necessário atingir o ponto nevrálgico e não colocar o problema somente nos beneficiários do Bolsa Família.
O Bolsa Família, um Programa muito importante que tirou várias pessoas da pobreza nos governos petistas, virou moeda de troca eleitoral para todos os partidos e parte considerável da classe política propagandística. É preciso avançar. E isso requer novas estratégias de Estado, com metas bastante claras a médio e longo prazo. Também requer uma reforma administrativa profunda que corte as regalias que a elite brasileira carrega. A dependência do dinheiro público não é só um mindset da classe pobre.
Não adianta empurrar com a barriga e esperar resultados diferentes. É chover no molhado e repetir as velhas fórmulas.
Fonte da imagem: GPT
Referências
[1]https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/bolsa-familia-faz-1-em-cada-2-familias-deixar-forca-de-trabalho-diz-estudo/
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[2] https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/bolsa-familia-faz-1-em-cada-2-familias-deixar-forca-de-trabalho-diz-estudo/
[3] TIEPPO, Carla. Uma viagem pelo cérebro: a neurociência da emoção, do aprendizado e do comportamento. São Paulo: Autêntica Business, p.231, 2023.
[4] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/10/salario-minimo-no-brasil-e-o-segundo-menor-entre-31-paises-mostra-ocde.shtml
[5] https://www.camara.leg.br/noticias/925341-relatorio-setorial-da-defesa-no-orcamento-de-2023-aponta-carencia-de-recursos-para-institutos-militares/#:~:text=Despesas%20e%20investimentos,rela%C3%A7%C3%A3o%20ao%20projeto%20deste%20ano.
Gostei bastante! Muito esclarecedor e provocativo.
Análise importante para profissionais da Assistencia Social que atuando com os beneficiários do PBF fazem uma leitura dessas familias com julgamentos. Vou imprimir para colocar em discussão nos CRAS onde atuo. Importante a reflexão linkada com a Neurociencia. Valeu Rangel!