O BRASIL NÃO QUER VIRAR UMA ANOMALIA
- Autor(a) Convidado

- 5 de nov.
- 6 min de leitura

*Cristine Soliveira
Vivemos sob o regime de regras sociais que nós mesmos criamos a fim de nos organizar como sociedade, a fim de não vivermos no caos, não destruirmos tudo à nossa volta, nem vivermos regidos por nossos desejos e egoísmos incontroláveis. Leis nos regem, organizamos o mundo em distinções diversas para nos orientarmos: alto-baixo, perto-longe, dentro-fora, o primeiro da fila, o último da fila, crianças são mais frágeis que adultos, vida, doença, morte, e cada elemento ligado ao nosso cotidiano individual como famílias, como parentes, como colegas, amigos, conhecidos, tudo, tudo ao nosso entorno tem um jeito de acontecer, de existir. Constituímos regramentos que partem do microcosmo ao macrocosmo de nossas existências, de nossa mais intrínseca particularidade a mundos maiores, como o de nossas cidades, estados, países e suas derivações incutidas: ruas, bairros, metrópoles, interior, zona urbana, zona rural, etc.
Esse ordenamento permite que nossa vida siga adiante com o menor número de conflitos possíveis. Entendemos o mundo em grande parte por causa desse modo de gerir nossa vida. Imagina viver sem um esquema que regule o trânsito, as filas, entradas e saídas, a tecnologia, as instituições, uso de entorpecentes, como álcool e fumo, a segurança pública (no mínimo a básica, tendo em vista a grande problematização desse aspecto no Brasil), etc . Seria um amontoado de tensões e distúrbios sem fim. Os limites nos orientam, nos asseguram proteção, nos dão um norte. Consumir bebidas alcoólicas e dirigir só a partir dos 18 anos, maioridade para inúmeras condições também têm essa faixa etária como partida para início de várias responsabilidades, sendo o exercício do direito ao voto é a partir dos 16 anos. São exemplos de regulações estabelecidas e consolidadas. No entanto, um semelhante painel disruptivo tem ocorrido no Brasil com mais frequência do que deveria, às vezes em dimensões inimagináveis que provocam perplexidade em muitos de nós. Mas infelizmente, não só instiga um pasmo geral como também inação e a horrível sensação de impotência. São anomalias e estas anomalias se avolumam com uma rapidez estonteante.
Quando sabemos que o crime organizado está infiltrado na economia corrente do país (postos de gasolina, padarias, imóveis, mercado de bebidas, fazendas canavieiras, jogos de azar virtuais, etc), inclusive com bancos - fintechs e físicos - que lucram com os investimentos destes criminosos, com milhões desviados do narcotráfico, dos negócios criminosos. Por causa disso somos impactados com fatos fora da regra, fora da legalidade, estupefacientes e inaceitáveis. É uma conjuntura nefasta, imbuída de extrema violência e que mina o corpo social por dentro como fruto das agressões deflagradas pelo enfrentamento destas facções criminosas com a polícia ou com grupos rivais, assim como os moradores são submetidos à tirania do controle territorial, toques de recolher, controle dos serviços de luz, internet, gás, tevê. Um verdadeiro horror vivenciado por estas pessoas, como se estivessem sendo comandados por um governo paralelo. Uma anomalia inaceitável e que vigora há anos e anos com pouca amenidade ou solução.
Quando percebemos as notícias cada vez mais crescentes de abusos recorrentes no campo das redes sociais e internet (suicídios decorrentes de desafios de jogos de competição, exposição intensa e ininterrupta de corpos, cotidiano, intimidade de meninos e meninas, o cyberbullying, dentre outros agravos), com principalmente crianças, adolescentes e minorias em geral. Por que permitimos estas violações e pouco nos preocupamos com a integridade psicológica e física de vulneráveis? Em que medida estes fatos são pautados, debatidos, analisados, buscado soluções ou resolvidos, nos âmbitos mais diversificados de nossas comunidades civis e institucionais?
Quando nos deparamos com informações de que artistas - já milionários - recebem cachês soberbos de prefeituras pequenas e pobres que não possuem ambulâncias ou creches, e nem a instituição governamental, e nem as celebridades dão satisfação ou ligam a mínima para a população. Por que idolatramos artistas sem responsabilidade, ética ou respeito social e igualmente cobramos os servidores públicos mais compromisso com a coisa pública?
Quando naturalizamos que nas favelas brasileiras hajam mais igrejas que escolas e hospitais (pesquisado e constatado pelo IBGE) onde mais falta infra-estrutura básica, (equipamentos estruturais, ação estatal firme, eficaz, constante e integrados), mas fechamos os olhos aos empresários da fé, gananciosos, que espalham-se e tiram parte do pouco que a população possui? As igrejas e templos precisam ser taxados, pagar impostos, a fim de retribuírem de alguma maneira por seus altos ganhos com dízimos incessantes doados pelos mais pobres. Uma anomalia devastadora da economia doméstica das famílias.
Quando baixamos a cabeça, obdedientes, às bancadas parlamentares de extrema-direita que defendem a gravidez de meninas de menos de 16 anos e impedem o aborto legalizado (caso de estupro), mas esbravejam contra a educação sexual nas escolas, que efetivamente preveniriam a gravidez precoce e abuso sexual de crianças e adolescentes (que ocorrem em seu maior número dentro de casa e com conhecidos)?Quando não protegemos estes indivíduos vulneráveis produzimos uma anomalia, porque nossa função no corpo social é protegê-las. O normal nas sociedades democráticas modernas é o resguardo cuidadoso dos mais vulneráveis e temos falhado quando nos damos conta do número assustador de vítimas inocentes.
Quando permitimos que jogos de azar on-line (bets) promovessem um estrondoso surto de dependência e vício que culminaram no acúmulo de dívidas pelas famílias (até crianças!) e que sucede em casos de suicídio decorrentes do abismo financeiro familiar, sem que estivéssemos alertas sobre isso? Não cobramos das autoridades competentes mais rigor na regulação, vigilância, e punição das empresas e empresários que os promovem e ainda seguimos resignados celebridades que publicizam os jogos virtuais sem o menor pudor. Deixamos essa anomalia crescer.
Quando negligenciamos o aumento do número de mortes de mulheres, vítimas de feminicídio e pouco fazemos sobre isso, porque, constata-se, se cresceram as ocorrências, as medidas tomadas foram insuficientes. Precisamos nos importar mais, exigir mais, gritar mais, dar atenção muito mais ampla ao fato, porque diz respeito a todo o tecido social que tem em sua constituição mulheres, mães, avós, tias, filhas, sobrinhas, primas, toda família tem uma mulher nela. É uma anomalia ter uma comunidade na qual as mulheres são comumente desrespeitadas, invisibilizadas, violadas, abusadas e mortas só por serem mulheres. O mesmo vale ao aumento dos casos de estupro de vulnerável, meninas que engravidam e não têm a menor capacidade de serem mães e são muitas vezes forçadas a isso, impedindo o desenvolvimento normal da vida infantil, marcadas para sempre - pelo abuso, pela violação, pela negligência dos adultos e as atores competentes envolvidos, pela trasnformação brutal do seu corpo infantil, pelo psicológico que sai dos trilhos, pelas responsabilidades advindas precocemente - por esta anomalia.
Não podemos compactuar com anomalias na sociedade com desdém e indiferença, sem objeção, sem reação. As anomalias (anomia, nas ciências sociais) nos remete à desestabilização social, ficamos sem rumo e desorientados, bem como apáticos, talvez paralisados. Nossa coletividade não pode virar um narco-estado, não pode transformar-se num consultório a céu aberto de traumatizados, viciados e suicidas, nem devemos render-se ao ambiente digital sem impor critérios, sem imposição clara de fronteiras que não podem ser ultrapassadas. Há uma urgência em regularmos as novas demandas da nossa vida em sociedade, ou as anteriores que não fomos criteriosos em regular, em estabelecer limitações mais coercitivas e impeditivas.
Os limites ajustam nossa vida em sociedade e nos faz ficar atentos às anomalias, nos colocam prontos ao enfrentamento de problemas com agudeza zelosa àquilo que é nosso. Analisando estes aspectos, vemos que é um dos motivos que cada vez mais apontam à necessidade de pluralidade, equidade, igualdade social, para não só privilegiados usufruírem de cuidados exclusivos, segurança e zelo (por terem acesso a bens e cuidados especiais que o dinheiro abundante proporciona) e o resto do corpo societário padecer de insegurança e desconexão social. A cobrança por uma menor desigualdade é essencial, pois a pobreza, a permanência em quase o tempo todo lutar e correr para nos sustentarmos (naquilo que é básico), nos atormenta, nos aniquila a criticidade, nos pressiona à desatenção e ao consequente avanço das anomalias que passam ao largo de nosso estupor social.
Mas o Brasil não quer virar uma anomalia, não queremos nossa desintegração, nosso descompasso, nossa desorientação. Se aceitarmos esse diagnóstico estaremos perdidos, como pessoas, como sociedade, como nação. Nossa bússola perdida há de ser encontrada. Recusamos ser interpretados como zumbis ou autômatos de nossas próprias vidas. Se tatearmos bem acharemos a bússola, o rumo, e enxotaremos as anomalias corrosivas que surgirem no caminho. Diz a estrofe da canção: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte!”
*Cientista Social e redatora
IMAGEM: Jovem Pan



Comentários