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O CARRO DE NETANYAHU


Os recentes confrontos entre Israel e Irã (BBC, 2024) despertaram intensa apreensão na comunidade internacional. O temor de que o conflito extrapole os limites entre os dois países e provoque um espraiamento regional é real e crescente — tanto sob o ponto de vista bélico quanto no que diz respeito a seus efeitos políticos e econômicos. A moeda foi lançada ao ar, e os deuses prendem a respiração.


Para compreender — tanto quanto possível — os interesses que inflam esse conflito, é preciso ir além da narrativa simplista que opõe democracias a autocracias ou que se ancora apenas na ameaça nuclear persa à existência do Estado de Israel. É necessário adentrar as motivações políticas que, à maneira de manobreiros habilidosos, moldam a microfísica do poder e dos ideais.


Anthony Giddens, em As consequências da modernidade, recorre a uma antiga celebração hindu na cidade de Puri, na Índia, para construir uma metáfora poderosa: o carro de Jagannatha. Nesse festival, carruagens colossais de madeira, ricamente adornadas, são empurradas por multidões de devotos. Alguns deles se lançam sob as rodas, entregando-se à imolação. A imagem evoca a força avassaladora e incontrolável da modernidade.


Mutatis mutandis, a metáfora do carro pode descrever perversamente o governo de Benjamin Netanyahu. Ao perverter o ideal do sionismo, manipulando não apenas a fé judaica, mas também uma questão existencial legítima do povo judeu, Netanyahu transforma a violência em método de sobrevivência política — um meio de se manter no poder e escapar de uma condenação que, não fosse o fatídico 7 de outubro de 2023 (Al Jazeera, 2023), já parecia iminente.


Antes desse marco, Netanyahu enfrentava forte oposição dentro e fora do Knesset (o parlamento israelense), especialmente por tentar impor reformas autoritárias que limitavam a independência do Judiciário (Reuters, 2023). Contudo, após os ataques do Hamas, sua liderança foi temporariamente legitimada por um clamor popular que exigia retaliação. A ofensiva militar que se seguiu, inicialmente voltada ao Hamas, rapidamente revelou sua natureza mais profunda: uma campanha de limpeza étnica em Gaza, escancarada nas imagens de destruição e morte que circulam diariamente pela mídia internacional (The Guardian, 2024).


O plano avançou. Bombardeios na Síria, ações contra o Hezbollah no Líbano e ataques aos Houthis no Iêmen, quando analisados à luz dos fatos, revelam-se etapas de uma estratégia mais ampla: anular qualquer base de apoio regional que o Irã possa ter. Os ataques às defesas antiaéreas iranianas e o assassinato seletivo de cientistas e oficiais da Guarda Revolucionária também integram esse roteiro, cujo objetivo é enfraquecer o regime teocrático dos aiatolás e torná-lo vulnerável à capitulação (BBC, 2024).


Mas o discurso oficial israelense, repetido por Netanyahu e seus aliados ultraortodoxos, mascara essas ações como garantias da sobrevivência de Israel. Não é. Trata-se, em verdade, de uma disputa geopolítica de longo prazo, que ganhou novo impulso com os chamados Acordos de Abraão (Council on Foreign Relations, 2020) firmados durante o governo Trump. Esses acordos visaram normalizar as relações diplomáticas entre Israel e monarquias sunitas da Península Arábica, como Emirados Árabes e Bahrein.


A lógica por trás da aproximação é econômica e estratégica: unir o potencial tecnológico de Israel com os petrodólares árabes, criando um novo polo regional de influência sob supervisão indireta dos Estados Unidos. No entanto, esse plano enfrenta um obstáculo central: o Irã. Governado por clérigos xiitas que utilizam a guerra por procuração (proxy war) como instrumento político, o país representa uma ameaça constante à estabilidade que os demais países desejam consolidar.


Mais do que uma ameaça a Israel, uma eventual bomba atômica iraniana colocaria em risco a capital saudita, Riade — e não Tel Aviv, como muitos supõem. O Irã funciona como um fio desencapado que, ao provocar instabilidade constante, mina os interesses estratégicos de vários atores globais. O regime que vitimou Nika Shakarami (Human Rights Watch, 2022) encontrou na retórica anti-Israel uma nova fonte de legitimação interna. Paradoxalmente, sua eventual queda poderia inaugurar algo ainda mais perigoso: a ascensão de setores ultranacionalistas da Guarda Revolucionária, com pragmatismo brutal e nenhuma preocupação com o juízo internacional.


A comparação com a Venezuela é útil, embora insuficiente: um Irã desestabilizado, com urânio enriquecido e controle sobre o Estreito de Ormuz — por onde escoa 30% do petróleo leve do planeta — seria uma ameaça global de proporções incalculáveis.

Nesse contexto, a atuação do ex-presidente Donald Trump, que tratou de acelerar o movimento do "carro de Netanyahu", funcionou como um trator que aplainou o terreno para conflitos ainda maiores. Sua política externa, centrada na ruptura e no unilateralismo, empurrou a região para uma lógica binária, desestimulando mediações diplomáticas e exacerbando o conflito.


A permanência de Netanyahu no poder não se sustenta mais pela política democrática, mas por uma retórica apocalíptica que legitima ataques à imprensa, repressão interna e apoio irrestrito a setores radicais da sociedade israelense. A guerra não apenas posterga sua queda; ela a suspende. Ao se apresentar como escudo contra o caos, Netanyahu protege a si mesmo da responsabilização jurídica por crimes de guerra. A política, nesse contexto, deixa de ser espaço de deliberação e se transforma em pura administração do medo.


O risco, contudo, não é exclusivo de Israel ou do Irã. O colapso do pacto político global — que garantia, ainda que precariamente, um equilíbrio entre as nações — abre espaço para o retorno ao estado de natureza descrito por Hobbes: onde não há autoridade comum, vale a força. Como advertiu Hannah Arendt, o agir político não é apenas a gestão do poder, mas a capacidade humana de iniciar algo novo — por meio da palavra, da promessa e da ação coletiva.


O Oriente Médio caminha para um ponto de inflexão. A alternativa à guerra eterna está na reconstrução do pacto político, na retomada de processos de negociação críveis, e na escuta das vozes que não querem mais ser esmagadas por tanques ou drones. Recusar um futuro onde a única forma de um líder se manter no poder seja sobre pilhas de cadáveres é o primeiro passo. Negociar não é fraqueza. É a única força que resta à política verdadeira: a capacidade de criar novos começos.


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REFERÊNCIAS USADAS.


AL JAZEERA. Hamas launches surprise attack on Israel. Al Jazeera, 07 out. 2023. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2023/10/7/hamas-launches-surprise-attack-on-israel. Acesso em: 23 jun. 2025.

ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: Difel, 2008.

BBC NEWS. Iran-Israel conflict escalates with missile strikes. BBC, 15 abr. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-middle-east-68810129. Acesso em:23 jun. 2025.

BBC NEWS. Israel attacks Iranian targets in Syria and Iraq. BBC, 12 maio 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-middle-east-68835599. Acesso em: 23 jun. 2025.

COUNCIL ON FOREIGN RELATIONS. The Abraham Accords. Council on Foreign

Relations, 15 set. 2020. Disponível em: https://www.cfr.org/backgrounder/abraham-

accords-arab-israeli-peace. Acesso em: 23 jun. 2025.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991.

HUMAN RIGHTS WATCH. Iran: Death of Nika Shakarami Highlights Protest Crackdown. Human Rights Watch, 04 out. 2022. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2022/10/04/iran-death-nika-shakaramiprotestcrackdown. Acesso em: 23 jun. 2025.

REUTERS. Explainer: What is Netanyahu's judicial overhaul and why is Israel so divided?. Reuters, 24 jul. 2023. Disponível em: https://www.reuters.com/world/middle-east/netanyahu-judicial-overhaulexplained-2023-07-24/. Acesso em: 23 jun. 2025.


THE GUARDIAN. Gaza death toll rises amid UN calls for ceasefire. The Guardian, 26


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Eis um apelo urgente à sensatez na política, face ao flagelo da guerra. Revela a estratégia de líderes, como Netanyahu, que usam a guerra para se manterem no poder, e a necessidade da comunidade internacional encontrar soluções pacíficas para evitar um colapso geral. O problema não se resume a Israel ou Irão, mas sim à viabilidade da própria política em tempos de crise.

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Guest
Jun 28
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Nos conflitos entre Nações quem mais sofre são os pobres. Pessoas que não tem muitos recursos em suas terras, migram ao ermo em busca de refugio em outras nações, ou seja, nas casas aleias.

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Guest
Jun 26
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Ótimo texto, mas, infelizmente para que se tenha uma solução diplomática e um acordo seja feito é necessário que abas as partes estejam dispostas a ceder, o que não me parece que seja o caso.

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