O CARRO DE NETANYAHU
- Miguel Pereira Filho
- há 2 dias
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Os recentes confrontos entre Israel e Irã (BBC, 2024) despertaram intensa apreensão na comunidade internacional. O temor de que o conflito extrapole os limites entre os dois países e provoque um espraiamento regional é real e crescente — tanto sob o ponto de vista bélico quanto no que diz respeito a seus efeitos políticos e econômicos. A moeda foi lançada ao ar, e os deuses prendem a respiração.
Para compreender — tanto quanto possível — os interesses que inflam esse conflito, é preciso ir além da narrativa simplista que opõe democracias a autocracias ou que se ancora apenas na ameaça nuclear persa à existência do Estado de Israel. É necessário adentrar as motivações políticas que, à maneira de manobreiros habilidosos, moldam a microfísica do poder e dos ideais.
Anthony Giddens, em As consequências da modernidade, recorre a uma antiga celebração hindu na cidade de Puri, na Índia, para construir uma metáfora poderosa: o carro de Jagannatha. Nesse festival, carruagens colossais de madeira, ricamente adornadas, são empurradas por multidões de devotos. Alguns deles se lançam sob as rodas, entregando-se à imolação. A imagem evoca a força avassaladora e incontrolável da modernidade.
Mutatis mutandis, a metáfora do carro pode descrever perversamente o governo de Benjamin Netanyahu. Ao perverter o ideal do sionismo, manipulando não apenas a fé judaica, mas também uma questão existencial legítima do povo judeu, Netanyahu transforma a violência em método de sobrevivência política — um meio de se manter no poder e escapar de uma condenação que, não fosse o fatídico 7 de outubro de 2023 (Al Jazeera, 2023), já parecia iminente.
Antes desse marco, Netanyahu enfrentava forte oposição dentro e fora do Knesset (o parlamento israelense), especialmente por tentar impor reformas autoritárias que limitavam a independência do Judiciário (Reuters, 2023). Contudo, após os ataques do Hamas, sua liderança foi temporariamente legitimada por um clamor popular que exigia retaliação. A ofensiva militar que se seguiu, inicialmente voltada ao Hamas, rapidamente revelou sua natureza mais profunda: uma campanha de limpeza étnica em Gaza, escancarada nas imagens de destruição e morte que circulam diariamente pela mídia internacional (The Guardian, 2024).
O plano avançou. Bombardeios na Síria, ações contra o Hezbollah no Líbano e ataques aos Houthis no Iêmen, quando analisados à luz dos fatos, revelam-se etapas de uma estratégia mais ampla: anular qualquer base de apoio regional que o Irã possa ter. Os ataques às defesas antiaéreas iranianas e o assassinato seletivo de cientistas e oficiais da Guarda Revolucionária também integram esse roteiro, cujo objetivo é enfraquecer o regime teocrático dos aiatolás e torná-lo vulnerável à capitulação (BBC, 2024).
Mas o discurso oficial israelense, repetido por Netanyahu e seus aliados ultraortodoxos, mascara essas ações como garantias da sobrevivência de Israel. Não é. Trata-se, em verdade, de uma disputa geopolítica de longo prazo, que ganhou novo impulso com os chamados Acordos de Abraão (Council on Foreign Relations, 2020) firmados durante o governo Trump. Esses acordos visaram normalizar as relações diplomáticas entre Israel e monarquias sunitas da Península Arábica, como Emirados Árabes e Bahrein.
A lógica por trás da aproximação é econômica e estratégica: unir o potencial tecnológico de Israel com os petrodólares árabes, criando um novo polo regional de influência sob supervisão indireta dos Estados Unidos. No entanto, esse plano enfrenta um obstáculo central: o Irã. Governado por clérigos xiitas que utilizam a guerra por procuração (proxy war) como instrumento político, o país representa uma ameaça constante à estabilidade que os demais países desejam consolidar.
Mais do que uma ameaça a Israel, uma eventual bomba atômica iraniana colocaria em risco a capital saudita, Riade — e não Tel Aviv, como muitos supõem. O Irã funciona como um fio desencapado que, ao provocar instabilidade constante, mina os interesses estratégicos de vários atores globais. O regime que vitimou Nika Shakarami (Human Rights Watch, 2022) encontrou na retórica anti-Israel uma nova fonte de legitimação interna. Paradoxalmente, sua eventual queda poderia inaugurar algo ainda mais perigoso: a ascensão de setores ultranacionalistas da Guarda Revolucionária, com pragmatismo brutal e nenhuma preocupação com o juízo internacional.
A comparação com a Venezuela é útil, embora insuficiente: um Irã desestabilizado, com urânio enriquecido e controle sobre o Estreito de Ormuz — por onde escoa 30% do petróleo leve do planeta — seria uma ameaça global de proporções incalculáveis.
Nesse contexto, a atuação do ex-presidente Donald Trump, que tratou de acelerar o movimento do "carro de Netanyahu", funcionou como um trator que aplainou o terreno para conflitos ainda maiores. Sua política externa, centrada na ruptura e no unilateralismo, empurrou a região para uma lógica binária, desestimulando mediações diplomáticas e exacerbando o conflito.
A permanência de Netanyahu no poder não se sustenta mais pela política democrática, mas por uma retórica apocalíptica que legitima ataques à imprensa, repressão interna e apoio irrestrito a setores radicais da sociedade israelense. A guerra não apenas posterga sua queda; ela a suspende. Ao se apresentar como escudo contra o caos, Netanyahu protege a si mesmo da responsabilização jurídica por crimes de guerra. A política, nesse contexto, deixa de ser espaço de deliberação e se transforma em pura administração do medo.
O risco, contudo, não é exclusivo de Israel ou do Irã. O colapso do pacto político global — que garantia, ainda que precariamente, um equilíbrio entre as nações — abre espaço para o retorno ao estado de natureza descrito por Hobbes: onde não há autoridade comum, vale a força. Como advertiu Hannah Arendt, o agir político não é apenas a gestão do poder, mas a capacidade humana de iniciar algo novo — por meio da palavra, da promessa e da ação coletiva.
O Oriente Médio caminha para um ponto de inflexão. A alternativa à guerra eterna está na reconstrução do pacto político, na retomada de processos de negociação críveis, e na escuta das vozes que não querem mais ser esmagadas por tanques ou drones. Recusar um futuro onde a única forma de um líder se manter no poder seja sobre pilhas de cadáveres é o primeiro passo. Negociar não é fraqueza. É a única força que resta à política verdadeira: a capacidade de criar novos começos.
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REFERÊNCIAS USADAS.
AL JAZEERA. Hamas launches surprise attack on Israel. Al Jazeera, 07 out. 2023. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2023/10/7/hamas-launches-surprise-attack-on-israel. Acesso em: 23 jun. 2025.
ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: Difel, 2008.
BBC NEWS. Iran-Israel conflict escalates with missile strikes. BBC, 15 abr. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-middle-east-68810129. Acesso em:23 jun. 2025.
BBC NEWS. Israel attacks Iranian targets in Syria and Iraq. BBC, 12 maio 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-middle-east-68835599. Acesso em: 23 jun. 2025.
COUNCIL ON FOREIGN RELATIONS. The Abraham Accords. Council on Foreign
Relations, 15 set. 2020. Disponível em: https://www.cfr.org/backgrounder/abraham-
accords-arab-israeli-peace. Acesso em: 23 jun. 2025.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
HUMAN RIGHTS WATCH. Iran: Death of Nika Shakarami Highlights Protest Crackdown. Human Rights Watch, 04 out. 2022. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2022/10/04/iran-death-nika-shakaramiprotestcrackdown. Acesso em: 23 jun. 2025.
REUTERS. Explainer: What is Netanyahu's judicial overhaul and why is Israel so divided?. Reuters, 24 jul. 2023. Disponível em: https://www.reuters.com/world/middle-east/netanyahu-judicial-overhaulexplained-2023-07-24/. Acesso em: 23 jun. 2025.
THE GUARDIAN. Gaza death toll rises amid UN calls for ceasefire. The Guardian, 26
jan. 2024. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2024/jan/26/gaza-death- toll-invasion-un-israel. Acesso em: 23 jun. 2025.
Ótimo texto, mas, infelizmente para que se tenha uma solução diplomática e um acordo seja feito é necessário que abas as partes estejam dispostas a ceder, o que não me parece que seja o caso.