O DESSERVIÇO DE VALE TUDO COM A ADOÇÃO NO BRASIL
- Manuel Sousa Junior

- 2 de out.
- 3 min de leitura

Nas últimas semanas, acompanhamos na novela Vale Tudo, exibida pela Rede Globo de Televisão em horário nobre, um verdadeiro desserviço em relação ao tema da adoção no Brasil. As personagens Laís (Lorena Lima) e Cecília (Maeve Jinkings) são casadas e adotaram a menina Sarita (Luara Telles), em um processo de adoção tardia, termo geralmente utilizado para se referir à adoção de crianças com mais de três anos de idade.
A trama vinha retratando a adoção de forma leve e sensível, destacando o amor presente na família, bem como os avanços e aprendizados da criança. Na semana passada, no entanto, a autora Manuela Dias decidiu inserir o genitor biológico na narrativa (utilizamos aqui o termo “genitor”, e não “pai”, por entendermos que a palavra “pai” não se aplica a essa relação). O personagem surgiu com a justificativa de que o juizado teria fornecido o endereço das mães, alegando querer conhecer a filha.
Sabemos que a novela é uma obra ficcional, aberta, que vai sendo modificada conforme as reações do público e os desejos dos autores e da cúpula da emissora. No entanto, o que poderia ter sido uma representação positiva, a adoção tardia por um casal de mulheres lésbicas, acabou se transformando em um desserviço e em desinformação (fake news). Isso porque a legislação brasileira proíbe que a família destituída da guarda da criança tenha acesso aos contatos e ao endereço da nova família adotiva.
Nesse sentido, se a autora da novela desejava inserir esse enredo na trama, deveria ter deixado claro que se tratava de um ato ilícito. Assim, se o genitor conseguiu o endereço das mães de Sarita, isso só poderia ter ocorrido por meio de alguma falcatrua. Entretanto, a narrativa se desenvolveu de forma natural, como se fosse comum o juizado entregar o endereço da família adotiva para que o genitor pudesse “tomar um café e comer um bolinho”.
Para agravar a situação, Laís e Cecília discutem na trama, pois uma delas aprovou o contato da filha com o genitor e ainda afirmou à esposa: “Como vamos impedir um pai de ver uma filha?” Essa frase é muito problemática, pois ele não é pai. Não existe “pai” ou “pai biológico” em uma relação lesbiana; e, se ele aparecesse, deveria sim ser impedido de ver a menina. Além disso, Cecília recorreu a um advogado, que apoiou o contato de Sarita com o genitor afirmando que a menina teria direito em conhecer suas origens. Como assim??? Aparentemente, a trama em torno desse núcleo será ainda mais movimentada com a inserção do novo personagem. Resta acompanhar e esperar que as informações sejam apresentadas de forma responsável, deixando claro os atos ilícitos cometidos.
No Brasil, a preferência pela adoção recai sobre crianças mais novas. Já as crianças mais velhas, que podem ser acolhidas por meio da adoção tardia, acabam permanecendo nos abrigos espalhados pelo país. Nesse sentido, a novela, que poderia servir como estímulo à adoção tardia, pode estar reforçando estigmas inadequados, como a ideia de que a família de origem da criança poderia reaparecer a qualquer momento. Tal narrativa, em vez de incentivar, pode afastar possíveis famílias interessadas em participar do processo de adoção.
De acordo com a legislação brasileira, o Estado deve esgotar todas as possibilidades de que a criança seja adotada por algum membro da família, como uma tia ou um avô, antes de disponibilizá-la para adoção. Apenas após esse processo, a criança é incluída no Cadastro Nacional de Adoção e segue trâmites legais bem definidos. Em nenhuma circunstância os contatos ou endereços podem ser compartilhados entre a família que perdeu a guarda e a nova família adotiva. Esses dados são confidenciais e protegidos por lei.
A problemática está na forma como a temática vem sendo abordada, a partir de uma percepção equivocada sobre práticas reais, regulamentadas por uma legislação sólida no Brasil. Essas distorções podem gerar ruídos e comprometer a compreensão dos atos relacionados à adoção no país.
Sou pai por adoção em uma relação homoafetiva e me senti ofendido e violentado pela desinformação apresentada sobre esse tema. Jamais permitiria qualquer contato da genitora com minha filha e tomaria todas as medidas cabíveis para salvaguardar nossos direitos enquanto pais, visto que o nosso processo de adoção seguiu todos os trâmites legais.
E você, o que acha? Consegue identificar os problemas nessa abordagem ou considera tudo normal? E se fosse com você e sua família, na vida real, qual seria a sua reação? Deixe sua opinião nos comentários.



Que coisa ridícula! Juizado dando endereço da família que adotou a criança? Nunca soube de um caso assim. A autora da trama se saiu muito mal nessa invencionice.
Parabéns pela sensibilidade, inteligência e cuidado com essa questão muito importante. Foi perfeito trazendo a verdadeira informação e alertando sobre o grave erro. Difícil agora corrigir tamanho desserviço pois a grande maioria da população leiga no assunto acaba acatando isso como norma geral. É lamentável e já causou um terrível prejuízo.
Perfeito! A adoção é um ato nobre e a novela, mesmo sendo uma ficção como narrado acima, ao invés de fomentar, fez um desserviço!
Manu, eu não acompanho a novela, mas sua matéria é mais do que necessária. Absurdos da dramaturgia