O FEMINICÍDIO É INACEITÁVEL!
- Autor(a) Convidado
- 24 de set.
- 5 min de leitura

*Cristine Souza
Feminicídios ocorrem em larga escala e com sinais de intensa e acentuada brutalidade no Brasil inteiro. Têm crescido as notificações oficiais, as denúncias nas delegacias, os artigos (como esse) nos sites, nas redes sociais, nas publicações impressas, nos podcasts, na tevê comercial, na academia, e em diversos outros espaços, há uma tentativa de colocar em pauta esse tema extremamente urgente e doloroso, uma mácula indefensável no seio da sociedade brasileira. Esse fenômeno - o feminicídio e as diversas violências e abusos praticados contra a mulher - não nasceu recentemente, existe há muito tempo, tanto que a “Lei Maria da Penha” que completou 18 anos, é uma lei criada com o intuito de promover e prover proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar. No entanto, não alcançamos os resultados que gostaríamos, tendo em vista que o Brasil consta como quinto lugar no ranking mundial quanto ao feminicídio e labutamos com o horror de termos uma mulher assassinada a cada 6 horas, apenas por ser mulher. Uma aberração coletiva.
Discutir o feminicídio em vários âmbitos do corpo social se faz mais que necessário, está no âmago da suposta modernidade da qual achamos merecer, é imprescindível do ponto de vista humanitário, do ponto de vista de nosso avanço civilizatório. Não podemos deixar , nem aceitar, que este fato exista e ocorra com tanta frequência e velocidade , aliás, não deveria ocorrer nunca, nem muito, nem pouco, queremos ficar fora da lista macabra da pontuação mundial de país feminicida. Não queremos reduzir os casos, queremos que parem de uma vez. Não podemos normalizar tal atrocidade contra nossas meninas, adolescentes e mulheres. É de nossa responsabilidade nos indignarmos contra essa desumanidade avassaladora, todos os dias, a todo momento.
Pode-se dizer que tivemos alguns avanços, como o que permite aos órfãos do feminicídio recebam uma pensão, mas se tem um benefício que não devemos desejar, seria esse. Perder uma mãe de forma violenta não tem rendimento que amenize. Nosso foco precisa estar concentrado em mantermos as mulheres, as mães, as meninas vivas, que usufruam com plenitude de suas vidas.
Há dez anos o feminicídio foi tipificado como crime no código penal do Brasil, mas desde essa época os casos quadruplicaram, inacreditavelmente. Segundo o “Mapa da Violência de Gênero”, temos o estarrecedor número de 4 feminicídios por dia. O painel DATAJUD divulga que 71 medidas protetivas são expedidas por hora em decorrência da demanda das mulheres em situação de violência em 2025. Este ano, durante a páscoa, no estado do Rio Grande do Sul, dez mulheres perderam suas vidas. Isso é inaceitável.
A Lei Maria da Penha trouxe melhorias na rede de proteção à mulher, sem dúvida, no campo dos direitos humanos. A invisibilidade do crime, fatal ou não, contra as mulheres, deixou de existir, agora é bem mais fácil sabermos do fato e das providências rápidas que podemos tomar em relação a isso. Não só como medida de proteção física, essa lei promove uma ampla teia de medidas sociais e legais que pretende encerrar os ciclos, fatídicos (ou não) de ataques contra os corpos das mulheres.
Dentre as regras estão o atendimento especial e humanizado às vítimas, direito ao apoio de uma equipe multidisciplinar nos atendimentos, a imediata efetivação das medidas protetivas, bem como o afastamento urgente do agressor. As políticas públicas desta lei visam a ampliação dos meios de proteção às sobreviventes, como a existência de casas-abrigo, as famosas “Delegacias da Mulher”, os juizados especializados, o monitoramento intenso por meio das rondas e medidas protetivas.
Mas a cultura da violência, persistente e impregnada na nossa entidade social, uma verdadeira vergonha para a nação brasileira, é um dos maiores obstáculos à evolução no sentido de extirpar essa doença de nós, nós, o povo brasileiro. Até a imprensa mantêm-se incompetente - não todos os veículos, mas boa parte deles - no quesito de vir a derrubar essa cultura e prosperar com o objetivo de, ao menos, ao menos!, reduzir os trágicos índices de fatalidades e casos graves. Podemos afirmar que a imprensa prima por reforçar estereótipos, e como resultado, eleva os preconceitos de gênero, uma das bases de todo esse processo de transgressões praticadas contra mulheres, desde a tenra infância.
Recentemente, uma mulher foi violentamente espancada pelo companheiro num elevador, recebendo 61 socos na face. E o rosto das mulheres tem sido um alvo preferencial para a brutalidade incessante, que aponta uma perversidade direcionada, desfigurar para atingir a identidade, para ferir sua dignidade e subjetividade. Querem nosso silenciamento. Poucos dias atrás uma menina de apenas 11 anos foi morta, seu martírio começou na escola - escola que deveria ser um espaço seguro - quando colegas a brutalizaram barbaramente. Todo o entorno dessa criança foi negligente para atendê-la, o que resultou em seu óbito.
Há um risco em ser mulher hoje. Certo, sempre houve, mas esperava-se que, com a modernidade e tantos avanços tecnológicos e bem-estar social, estivessem minimizados drasticamente as inúmeras e brutais dificuldades com as quais as mulheres sempre viveram. Desde as crueldades físicas, uma enormidade de outras podem ser associadas a estas, embora não deixem marcas, como a psicológica, a moral, a patrimonial e a sexual. Todas são violências, de tipos e graus diferentes, e todas devem ser permanentemente combatidas. É preciso deixar a omissão de lado quando presenciarmos um crime contra uma mulher, quando houver suspeita é necessário denunciar ou agir, se for possível e assegurado. O famoso e nefasto “em briga de marido e mulher não se mete a colher” não é mais admissível. Feminicídio é de nossa conta, todas as pessoas precisam ficar indignadas e lutar contra esse peso, diuturnamente.
Temos uma dívida com Alícia Valentina, com Sther Barroso, com Harenaki Javaé, com Bruna da Silva, com Clara Venâncio, com Vitória Regina, com Soraya Tatiana, com Shayene, com Vanessa Ricarte, com Gabriela Mariel, com Amanda Fernandes, com Élida Tuane, com Beatriz Milano, com Carolina da Cunha, dentre tantas e tantas outras, como as 30.980 mulheres negras que foram assassinadas nos últimos 10 anos. Basta! Mulheres religiosas não estão a salvo, nem evangélicas, nem católicas, nem negras, pardas ou brancas, ou meninas, ou adolescentes. E o assédio constante nos cerca, seja virtual, seja na “vida real”, e fabricam novas vítimas que lutam pela superação do abuso.
Não mais tolerar a violência, nem o silêncio, deve ser nossa bandeira. Criar laços e redes protetivas, firmes, efetivas, inclusivas, deve ser nosso farol, com o fortalecimento de espaços públicos, fortificação dos movimentos sociais. As mulheres estão ainda muito sozinhas, e isso precisa acabar. Todas as etapas subsequentes que acontecem, do início de um relacionamento até a perda da vida da mulher, carecem de mais esclarecimento e conhecimento, além das denúncias, alertas, boletins de ocorrência e demais mecanismos de coerção aos abusos variados, carecem ser tratados com seriedade, mais garantidos pelos poderes públicos. Que venham mais leis Maria da Penha. Viva a lei anti-feminicídio que evoluiu e reestruturou as penas e o tipo penal do crime, são de 20 a 40 anos de reclusão agora, Lesão corporal, injúria, calúnia e difamação estão inclusos, e se forem descumpridas as medidas protetivas, passará a ter 2 a 5 anos de reclusão. E agora o feminicídio não é mais uma qualificadora de homicídio e sim um crime autônomo, gravíssimo, com a pena mais alta no sistema penal.
Exigimos uma sociedade mais bem estruturada, o desmantelamento sistemático de preconceitos de gênero, do sexismo, da misoginia que expande-se entre meninos, adolescentes e jovens, além da destruição do conservador patriarcado, devastador da autonomia feminina, todos características imperdoáveis de uma comunidade que há muito já deveria ter mudado para melhor, tornando-se inclusiva, empática, humana, decente. Somos um corpo social, significa que todos estão contidos nele e seguir adiante implica todos em conciliação. Uma das figurinhas que circula nas redes sociais sobre o tema está mais do que certa, o Brasil que queremos é o país em que uma mulher possa ficar viva depois de terminar um relacionamento.

*cientista social e redatora
IMAGEM: Instagram
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