Uma data que vem sendo pouco lembrada é o dia 22 de agosto, comemorando o Dia do Folclore. É dia de celebrar o imaginário de nossa população, as tradições rurais, a cultura popular. Não apenas documentos oficiais registram a história. Contos, festas e oralidade também perfazem um memorial da nossa identidade. No entanto, o mergulho numa urbanização profunda, com todas as dificuldades financeiras, trabalhistas, e sanitárias possíveis, nos afastam da natureza e seus fenômenos misteriosos. Ainda bem que a cinematografia nos aproxima. A série da Netflix “Cidade Invisível” é uma benção para rememorar nossas relações com o sobre-humano.
A trama gira em torno de uma investigação policial que se inicia após um boto cor-de-rosa ser encontrado nas águas da Baía de Guanabara. O que faz um mamífero marinho que vive nas águas doces da Amazônia aparecer em local tão improvável? A partir de então, se desvela um enredo com muita fantasia e uma percepção que norteia a reflexão dos protagonistas: alguns mitos infantis não têm nada de lendários. Eles estão no meio de nós.
No cerne de toda dúvida na aparição de entidades pitorescas, algo muito discutido em nossa contemporaneidade: o distanciamento do homem com o meio ambiente. Uma reserva ambiental nas imediações do Rio de Janeiro está ameaçada por um empreendimento imobiliário. Seus habitantes parecem seduzidos em deixar o local após indenizações que trariam estabilidade e ganhos materiais. Contra esse pensamento, a permanência no local e a continuidade de uma filosofia de vida que integra o homem aos ecossistemas do planeta. A consideração desse fato é que quanto mais o homem se afasta de suas raízes, periga se aproximar de causas predatórias e ambições de crescimento, pautando ideologias perigosas de acumulação de riquezas a qualquer custo.
Com isso, os guardiões desses biomas se veem acuados e adentram a nossa sociedade sob formas antropomorfizadas. E assim vão aparecendo aqueles seres imortalizados nas obras de Monteiro Lobato e Câmara Cascudo. Passeiam pelos capítulos o Saci Pererê, a Cuca, a mãe-d’água, o boto cor-de-rosa (que se transforma num varão reprodutor), o curupira, Tutu Marambá (também conhecido como “bicho papão”) e outros, vivendo em péssimas condições, habitando ocupações precárias, e passando muitas dificuldades, como qualquer outro miserável. Suas origens demonstram dramas reconhecidamente humanos. O êxodo das matas para as periferias da metrópole simboliza o crescimento das favelas. Indivíduos enxotados dos seus locais de procedência pela devastação ambiental, grilagem de terras e conflitos agrários.
Quem possui ligações com os recônditos interioranos, já ouviu alguma vez os causos dos moradores relatando situações enigmáticas ao adentrarem florestas e cercanias das pequenas cidades. Uivos, luzes, trotes, caminhos fechados... E assim se preparavam para novas surpresas. Fumo para agradar a caipora; armadilhas para pegar o saci; orações para afastar o boitatá; formação de grupos para pegar lobisomem. Até “Chupa-Cabra” aparece. São sistemas de pensamento, relações sensoriais, contatos metafísicos, crenças reais que sustentam estilos e vivências que espero que não caiam em esquecimento no avançar das gerações.
“Cidade Invisível” é uma das grandes atrações da Netflix, sucesso em cerca de 40 países. O premiado diretor Carlos Saldanha – responsável por franquias como “Era do Gelo” e “Rio” e indicado ao Oscar – reconhece a força do produto nacional e os seres extraordinários que permeiam nosso ilusório. A segunda temporada está confirmada. E após apreciá-los, nos perguntamos: será que são tão fantásticos assim???
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