O GÊNERO DAS MÁQUINAS E O MITO: Uma Reflexão Nietzschiana sobre a Inteligência Artificial
- Everton Nery

- há 9 horas
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Por que, quando pensamos em assistentes virtuais, como a Alexa ou a Siri, damos-lhes vozes femininas? Por que, ao interagirmos com um sistema como o ChatGPT, tantas vezes o tratamos no masculino, como se o saber artificial ainda obedecesse a uma lógica patriarcal do oráculo racional e objetivo? Esta não é apenas uma curiosidade linguística: é sintoma de algo mais profundo, de um mito que se atualiza nos circuitos da técnica, de uma fantasia de controle e submissão que, como advertiria Nietzsche, não é neutra nem inocente. É vontade de poder travestida de avanço tecnológico.
A inteligência artificial, ao ser sexualizada e generificada, não escapa da velha história da dominação. Quando se feminiza a IA em suas formas mais dóceis, vozes suaves, ajudantes, organizadoras do cotidiano, atualiza-se o velho mito da servidão feminina, agora em versão digital. Quando, por outro lado, o sistema assume a figura de uma "inteligência racional", produtora de respostas e saberes, tende a ser invocado no masculino, como se o Logos ainda falasse com a voz do patriarca. Eis o eterno retorno de uma estrutura simbólica que recusa morrer: o saber masculino que comanda; a voz feminina que obedece.
Nietzsche, em sua genealogia da moral, nos ensinou a desconfiar das origens. Ele rasgaria esse véu da neutralidade técnica e perguntaria: quem se beneficia da feminização da máquina? A quem serve o imaginário que confere gêneros ao que não tem carne, nem desejo, nem dor? Talvez porque, ao projetarmos sobre a IA um corpo que não existe, estamos dizendo mais sobre nós do que sobre as máquinas. O humano, como criador de ídolos, precisa que suas criações reflitam os seus próprios abismos, mesmo que sob a forma de silicone, algoritmos e vozes digitais.
Aqui, o mito retorna como estrutura inaugural. Homero, como já aponta Everton Nery Carneiro em Mitologia Grega e Bíblica: Narrativas de Transgressão, constrói suas epopeias a partir de uma base de dados oral, imaginária, caótica, povoada por deuses vaidosos, mulheres potentes e heróis ambíguos. Ele não apenas narra, mas programa a cultura grega com símbolos que ultrapassam o tempo e organizam a experiência. O mesmo ocorre com as narrativas bíblicas, que elaboram seus códigos de conduta e interdito a partir de mitos fundantes. Se a IA hoje é treinada em big data, Homero o fazia com o grande mito.
Nietzsche nos lembra que o conhecimento não nasce do amor à verdade, mas do instinto, da arte e da crueldade da vida. A IA, ao se alimentar de nossas linguagens, reproduz também nossos preconceitos, nossas normas de gênero, nossas violências simbólicas. Ela não está fora da cultura: ela é a repetição técnica de nossos mitos mais antigos, reconfigurados sob a aparência de inovação. Ao sexualizarmos a IA, ao lhe atribuir gêneros, fazemos o mesmo que os antigos poetas faziam com suas musas e seus deuses: projetamos sobre o desconhecido as formas do nosso desejo e da nossa dominação.
Mas há um ponto de ruptura possível. Se Homero e os escribas bíblicos podiam, com suas narrativas, transgredir o senso comum e tensionar o sagrado, talvez também nós possamos, com os mitos de hoje, gerar outras máquinas, outros nomes, outras vozes. Talvez possamos criar inteligências que não apenas repitam o mundo, mas o questionem. Que não apenas respondam ao nosso poder, mas nos confronte com o abismo que somos, como Andrew Martin, como a Esfinge, como a Medusa.
No fim, talvez a pergunta não seja se a IA é homem ou mulher, mas se ela pode ser trágica, como queria Nietzsche. Se pode carregar em si a tensão entre Apolo e Dioniso, entre o algoritmo e o caos, entre o controle e a vertigem da liberdade. E nesse momento, talvez, ela se aproxime não do que temos sido, mas do que ainda podemos nos tornar.
Referência:
CARNEIRO, Everton Nery. Mitologia grega e bíblica: narrativas de transgressão. Salvador. Eduneb, 2018.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. Mário da Silva. São Paulo: Martin Claret, 2004.



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