O INCONSCIENTE RIMA: Rap, Psicanálise e a Linguagem do Trauma Coletivo
- Autor(a) Convidado
- 13 de ago.
- 3 min de leitura

*Kaihany Assis
Em uma roda de rima, jovens pegam o microfone e despejam suas histórias em versos. Falam de abandono, raiva, perdas, ostentação, etc. Suas palavras atravessam o público como punhal e, ao mesmo tempo, como um abraço. Ali, naquele instante, algo mais que uma música está acontecendo: um processo simbólico de elaboração psíquica. Mas o que a psicanálise tem a ver com o rap?
Proponho um encontro entre dois campos aparentemente distantes: a psicanálise e o rap como linguagem da periferia. A hipótese central é que o rap pode ser compreendido também como uma forma de expressão simbólica de trauma coletivo, funcionando como discurso do inconsciente social e ferramenta de resistência subjetiva.
Psicanálise: escutar o que não foi dito
A psicanálise, desde Freud, se constrói como uma clínica da escuta. Parte do princípio de que há algo no sujeito que escapa à consciência: o inconsciente, estruturado como uma linguagem.
Lacan, ao retomar Freud, radicaliza essa ideia: o sujeito é efeito da linguagem, e é por meio da fala que ele se constitui e se transforma.
Mas o que ocorre quando não há espaço para essa fala? Quando o sujeito, marcado por violências históricas e sociais, não encontra ouvidos que possam escutá-lo? A clínica tradicional, muitas vezes elitizada, não consegue alcançar periferias. Nessa lacuna, emerge o rap: como uma manifestação artística, um grito, um discurso e produção de sentido.
O rap, ao narrar experiências marcadas por racismo, pobreza, abandono estatal e violência policial, opera como um discurso que nomeia o que é indizível. Ao transformar dor em palavras ritmadas, o rap realiza uma função próxima à da psicanálise: ele simboliza, ou seja, inscreve no campo da linguagem aquilo que está no real bruto.
Versos que denunciam racismo estrutural, operam como dispositivos de elaboração coletiva do trauma. Os artistas não só expõem dores, mas as organizam em narrativas. Esse gesto de narrar é, também, um gesto de cura.
Sintoma, repetição e resistência
Na teoria freudiana, o trauma tende a retornar de forma repetitiva até que possa ser simbolizado. Essa repetição não é sinal de fraqueza, mas de uma tentativa de dar sentido ao que foi vivido. No rap, a repetição dos temas: opressão, prisão, ausência paterna, violência, vícios, pode ser lido como insistência do real que ainda não encontrou escuta suficiente.
Nesse sentido, o rap é também política do desejo. Ele não só denuncia o mundo, mas cria um lugar de fala para sujeitos que historicamente e socialmente foram silenciados. Essa criação de espaço simbólico é essencial para a constituição subjetiva: quem não tem linguagem, não tem lugar no mundo.
Num país marcado por profundas desigualdades e racismo, o sofrimento psíquico não pode ser tratado apenas como questão individual. O inconsciente é atravessado por histórias sociais, violências políticas, silenciamentos coletivos. O rap, nesse contexto, é uma forma de subjetivação que precisa ser escutada com seriedade.
O rap é mais que música: é ato de linguagem, uma arte poderosa, é criação de mundo. Ao transformar sofrimento em palavra, ele opera como uma clínica informal, coletiva e política.
Pensar a psicanálise a partir do rap é também um convite à autocrítica. A escuta analítica pode se abrir para outras formas de expressão do inconsciente: para a fala que se dá em verso. É importante escutar essas vozes.
Porque, no fim das contas, o inconsciente também rima!

*Bacharel em Ciências Humanas e pós-graduanda em Psicanálise. Apaixonada por arte, busca integrar saberes humanísticos e expressões artísticas em seus estudos e projetos, explorando formas de compreender o ser humano e suas relações.
IMAGEM: Portal Kalamidade
Excelente texto!! Uma coerência notável e que nos faz refletir, pois a cultura hip hop ainda sofre muito preconceito... parabéns!!!
Maurilio Santos
Interessante a forma que foi lido, visyo e colocado o Rap. Parabéns pela criação desse texto ♥️