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O PÊNIS DE SIMONE DE BEAUVOIR: Afinal, o que é ser “homem”?

Foto do escritor: Thiago Araujo PinhoThiago Araujo Pinho



Quando você pensa na palavra “opressão”, o que brota dessa sua cabeça progressista? Provavelmente algo frustrante, algo que recusa sua sede, sua fome, seu desejo. Ou seja, eu quero (ou eu sou) X, alguma coisa me impede de alcançar esse X, logo estou sendo oprimido. Esse é o modelo mais óbvio de “opressão”, o mais autoevidente, escancarado, digamos assim, mas como tudo nas ciências sociais nada é o que parece, nada é simples como falam por aí. Eu convido você, meu leitor aleatório favorito, a mergulhar nesse campo de complexidade, contingência, mas lembre... tenha cuidado, afinal:

Admite-se facilmente que há perigo nos exercícios físicos extremos, mas o pensamento também é um exercício extremo e rarefeito. Desde que se pensa, se enfrenta necessariamente uma linha onde estão em jogo a vida e a morte, a razão e a loucura, e essa linha nos arrasta” (DELEUZE,1990, p. 129).

Seja você de direita ou de esquerda, caso não queira se machucar, vá embora, volte correndo ao conforto de algum discurso conveniente, aos braços de palavras aconchegantes... não fique aqui!!!! Os riscos podem ser altos demais, o custo muito doloroso, por isso não me responsabilizo pelos danos à sua conveniência. Se você espera desse ensaio algo que reforce suas expectativas, algo que apenas instrumentalize suas visões políticas ou pessoais, numa espécie de autoajuda reacionária ou até mesmo progressista, lamento muito te desapontar com essa mensagem inconveniente: "você aterrissou no aeroporto errado". Mas, caso queira invadir o jogo acadêmico das ideias, correndo os riscos dessa jornada científica, então seja bem-vindo, sente ali naquela poltrona e aperte o seu cinto.


Primeiro, antes de qualquer mergulho mais profundo em águas feministas, é preciso deixar claro que “homem” ou “mulher”, assim como milhares de outros arranjos identitários, devem ser vistos como recortes políticos ou de pesquisa e não essências que caminham na superfície do planeta. Na prática, somos criaturas interseccionais, experimentamos o mundo como uma totalidade de vetores, ao invés de gavetas convenientes ou cavernas identitárias. Isso significa que esse ensaio ao alcance dos seus olhos, da mesma forma, é um grande recorte, uma incrível abstração, embora seja importante na medida em que realça certos aspectos do mundo, assim como levanta perguntas curiosas (ou seriam perigosas?).


A análise mais clássica, de figuras como Simone de Beauvoir, e que ainda permanece na maioria das vertentes do feminismo contemporâneo, dos mais pós-estruturalistas até aqueles galhos mais marxianos, envolve uma leitura freudiana das circunstâncias. Embora seja uma pessoa crítica a alguns dos postulados de Freud, Beauvoir continua mantendo a arquitetura principal do seu edifício retórico, principalmente dos seus textos psicanalíticos iniciais, como aqueles da década de 10. Nesse modelo, o Super Ego, personificado na figura das instituições, tem apenas um papel bem simples e claro: reprimir, dizer não!!! Isso é o que Foucault, em um dos seus livros mais famosos[1], chama de poder negativo, uma matriz vertical, sufocante e contrária à minha própria identidade e suas demandas. Na prática, essa é a definição mais popular de "poder", aquela que faz parte da boca do povo, bem ali na ponta da língua. Essa palavra se apresenta como um grande obstáculo entre EU e o meu DESEJO, uma grande pedra irritante. Quando dizem em um boteco progressista: "o machismo é uma forma de poder", o que essa frase de fato significa é: "o machismo limita meu campo de possibilidades, minhas escolhas". Em outras palavras, "PODER" é sinônimo de "REPRESSÃO".


Seguindo esse percurso psicanalítico, Beauvoir com seu feminismo existencialista interpreta os “homens”[2] como sujeitos, como criaturas autônomas, ao invés de objetos passivos presos na superfície do mundo, ou seja, criaturas livres capazes de explorar seus corpos e as coisas ao redor. As “mulheres”, ao contrário, seriam oprimidas, o que significa limitadas em seus campos de possibilidade.  Levando em conta que o homem é “baseado em suas necessidades como um indivíduo independente e ativo – será necessário para a mulher que também é um sujeito, ativo, insinuar a si mesma em um mundo que tem condenado ela à passividade” (BEAUVOIR, 1953, p. 644).


Sem dúvida, nesse campo repressor, ou melhor, nesse conceito específico de opressão, o objetivo é libertar o sujeito, o que significa oferecer o máximo de possibilidades antes negadas. Essa linha de pensamento, muito comum ainda hoje, existe por conta da psicanálise freudiana e sua ideia clássica de Super Ego como repressão. Mas e se esse modelo não for o único, nem mesmo o mais predominante hoje? Existe alguma chance de oprimir sem reprimir? Se a resposta é "sim", o que isso significa?


Em invés de pensar os “homens” como criaturas livres, já empoderadas em suas possibilidades, quem sabe não temos aqui uma nova forma de super ego atuando, uma nova ideia de opressão? Nesse caso, é necessário sair um pouco de Freud e mergulhar em Lacan. “O gozo hoje funciona efetivamente como um estranho dever ético: indivíduos sentem-se culpados não por violar inibições morais entregando-se a prazeres ilícitos, mas por não serem capazes de gozar” (ŽIŽEK , 2006, p. 128).


Quando observamos os “homens” com calma, principalmente quando você segue até espaços mais clássicos, como cidades do interior, por exemplo, as coisas são complicadas, muito complicadas. O ponto não é que homens podem ser mais sexualmente livres do que as “mulheres”, ou que eles podem ser mais expansivos do que as “mulheres”, ou mais “extrovertidos” e “impositivos” do que as “mulheres”... eles PRECISAM SER. Essa liberdade aparece como uma outra forma de peso moral, revelando um outro tipo de super ego nos bastidores, diferente daquele clássico das décadas de 10 e 20, ou seja, o freudiano. Nesse novo conjunto de circunstâncias, a mensagem do super ego não é “reprima”, “não faça”, mas, ao contrário, “faça”, “mostre”, “afirme”. Isso significa que a liberdade “masculina” é sentida como uma obrigação, um peso, principalmente quando é pensada como uma performance feita e refeita a cada momento. Lembra daquele churrasco de interior com homens bebendo cerveja e falando palavrão? Existem apenas duas opções nesse cenário nada hipotético: 1) ou você participa e reproduz as regras do jogo, ao mesmo tempo que acolhe o prazer dessa comunhão fálica ou 2) você é “viado” e excluído do contato e reconhecimento dos outros. De repente, você começa também a beber sua cerveja, contar sua piadinha homofóbica, coçar o saco, tudo isso temperado com muita extroversão. Em outras palavras, o ponto não é que homens são livres, mas eles PRECISAM ser, ao mesmo tempo que afirmam essa característica pelos quatros cantos do globo. A liberdade agora é nada mais do que um novo tipo de imperativo, uma nova espécie de Super Ego atuando nas entrelinhas da própria experiência.


Hoje, no mundo contemporâneo, o que temos não é uma emancipação das “mulheres” com sua abertura liberal, mas sim o predomínio do super ego lacaniano em todas as circunstâncias. Se antes era reservada aos “homens”, agora as próprias “mulheres” fazem parte do circuito. O capitalismo não mais reprime, lamento te desapontar. Ele não diz: "não faça"; ele fala, ao contrário: "faça, goze e, principalmente, mostre esse gozo acontecendo". Se acha exagerado, se parece estranho esse meu raciocínio, talvez você não tenha Instagram, Twitter, Facebook ou Linkedin. Foucault chama esse cenário de poder positivo, uma prática sutil, embora poderosa, já que não se opõe a quem eu sou, mas reforça os limites da minha própria identidade. Nesse solo de conveniência, a opressão não é repressiva... ela é permissiva.


Meu leitor aleatório favorito, posso te fazer uma pergunta um pouco indiscreta? Não? Mas vou fazer assim mesmo: Quando você entra no Instagram e observa milhões de corpos expostos nas vitrines digitais, todos querendo gozar, todos ansiosos com suas comidas diferentes, suas viagens alternativas, suas festas impressionantes, seus encontros inesquecíveis, afirmando suas singularidades o tempo inteiro em um ritmo alucinado, você se sente livre? Ou, ao contrário, você sente um novo tipo de imperativo sobre seu corpo, uma nova obrigação correndo por suas veias: “seja feliz!!!, goze!!!, curta!!!, seja!!”. Quando Lenina afirma: “Nunca deixe para amanhã o prazer que puder gozar hoje” (HUXLEY, 1979, p. 57), isso nunca foi pensado por Huxley como um grito de emancipação, mas como um último suspiro em um cenário pós-apocalíptico de indivíduos desesperados. Se Orwell e sua “polícia do pensamento” (ORWELL, 1984, p. 3) representa o super ego no feminismo existencialista de Beauvoir, Huxley, por outro lado, representa a atmosfera lacaniana com sua permissividade como obrigação.


Em outras palavras, a fuga das garras do super ego freudiano, uma das grandes metas do feminismo existencialista, como a de Beauvoir, não é bem uma garantia emancipatória, mas apenas uma mudança de regimes de poder, uma simples troca de imperativos. Se o primeiro é rude, evidente, um grande “NÃO!!!” estampado na sua cara, o segundo, ao contrário, é um grande “SIM”, mas não qualquer “sim”, um “sim” traiçoeiro, quase como uma droga que consome seu tempo, suas entranhas. Bem vindo ao Admirável Mundo Novo!!!!

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

 

BEAUVOIR, Simone de. The Second Sex. Great Britain: Jonathan Cape, 1953.

DELEUZE,  Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1990.

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Porto Alegre: Editora Globo, 1979.

ORWELL, George. São Paulo: Companhia editora nacional, 1984.

ZIZEK, Slavoj. Para ler Lacan. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2006.

 

 


[1]  Vigiar e Punir

[2] “Homem” nesse ensaio é colocado aqui entre aspas, porque Beauvoir se refere apenas aos homens cis (sejam eles hétero ou não) e toda bagagem biológica que ele carrega.

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2 Comments

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Luiz Freitas
Luiz Freitas
Feb 22, 2024

Muito bom o texto, principalmente , em nossos tempos de progressimo ingênuo.

Penso que dialogar nestes termos sobre "homens" é necessário, pois de toda interação que consigo rememorar e observar me parece que a identidade masculina é "esculpida a machado" e os escultutores são detalhistas, "homens e "mulheres" analisam cada detalhe com minúcia e a menor imperfeição faz sentir a lâmina e reposiciona o sujeito em um eterno dever-ser: uma forma de fazer sexo, de beber cerveja, os gostos e etc...


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Thiago Pinho
Thiago Pinho
Feb 22, 2024
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Tem essa características mesmo, Luiz

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