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O PREÇO DO NÃO REMUNERADO: UMA RESPOSTA AO CANTOR ZEZÉ DI CAMARGO







Eu só queria assistir o novo reality do Netflix, Família Camargo, em uma tarde tranquila de domingo. Tinha curiosidade em saber o que Zezé Di Camargo e sua filha Wanessa Camargo falariam e como seria apresentada a rotina deles. Era pra ser só isso. Até que no final do primeiro episódio eu me deparo com esse diálogo:


Wanessa - “Mas, ela construiu com você isso aqui.”

Zezé - “Não, ela estava comigo quando eu construí isso aqui.”


Para contextualizar brevemente. Wanessa falava sobre sua mãe e ex-mulher de seu pai, Zilú Godoy, que está lutando na justiça para receber parte do patrimônio que construiu na época em que era casada com o cantor sertanejo. O “aqui” de Wanessa se refere a fazenda da família “É o Amor” que corresponde a uma área de 1.500 hectares que abriga vacas de até R$1,5 milhão e conta com laboratório usado para a reprodução de gado nelore puro. Em leilões, Zezé chega a faturar até R$6 milhões com a venda de animais.[1]


Em outro momento do documentário, Zezé insiste na sua percepção dizendo que não deve nada à ex-esposa e que ela não deveria ter direito a parte do patrimônio porque aquilo foi feito por ele enquanto ela fazia “nada mais que sua obrigação de mulher de estar ao meu lado”.


Como disse, eu só queria relaxar, mas não consegui. As palavras do Zezé rodaram na minha mente, me fazendo lembrar da minha mãe, mulher que trabalhava, cuidava da casa e de três filhos sozinha. Pensei em uma vizinha, esposa que deixou o trabalho para se dedicar a casa e quando se separou não recebeu nem 1% do patrimônio do ex-marido. E assim eu continuei visualizando mulheres em diversas situações da minha vida nesta mesma configuração: pessoas que sacrificaram por seus cônjuges e família e nada receberam, porque, aparentemente, eram atividades em nome do amor.


Diante disso, me senti no dever de escrever diretamente para o Zezé, e agora este texto passa ser uma conversa com ele - que eu tenho o prazer de dividir com você:


Zezé, a partir de suas palavras quero apresentar uma percepção da realidade que está lhe faltando e que compromete significativamente a vida de milhares de mulheres no mundo inteiro. Quando você fala que sua ex-mulher fazia a “sua obrigação” e que “estava com você” enquanto você construía sua carreira, acredito que quer dizer que ela não tinha uma carreira profissional e suas atividades se resumiam a “apenas” cuidar da casa e dos três filhos, certo? Ou seja, ela foi uma mulher dedicada ao trabalho doméstico e à vida materna e não precisou correr atrás de dinheiro, trabalho remunerado, chances profissionais e muito mais, que você deve ter passado para sustentar financeiramente sua família. Você bancava tudo e ela poderia ficar tranquila em casa fazendo a “natural” tarefa de cuidar da casa e dos entes queridos, uma atividade que com certeza é motivada pelo amor e pelo afeto, e estes elementos não precisariam de compensação financeira. Seria este seu raciocínio?


Então, deixa eu te falar um pouco do trabalho doméstico através do artigo “Os afazeres domésticos contam”[2] de Hilda Pereira de Melo. Já no resumo dele, há uma reflexão sobre como a ideia que temos de trabalho doméstico faz parte de uma construção sociocultural que domina a sociedade e oprime as mulheres. Observe:

“Este artigo tem como objetivo propor uma mensuração para as atividades realizadas pelas pessoas no interior dos lares, as quais têm enorme importância na reprodução da vida e no bem-estar da sociedade. Esses serviços gerados na execução dos afazeres domésticos, por não estarem associados a uma geração equivalente de renda, são ignorados pela teoria econômica que não os valora e não contabiliza no Produto Interno Bruto (PIB) dos países. Uma provável interpretação para esse não-reconhecimento origina-se na histórica discriminação sofrida pelas mulheres nas diversas sociedades, a quem foi delegada a execução dos afazeres domésticos. Desconhecê-los reforça o conceito de invisibilidade, que caracteriza o trabalho doméstico e a inferioridade do papel da mulher na sociedade.”


Este artigo se propôs a contabilizar e mensurar financeiramente o valor do trabalho doméstico na economia brasileira, ”tendo por base os procedimentos usuais de estimativas de bens ou serviços não mensurados por estatísticas econômicas, estatísticas demográficas e sociais originárias da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) que, desde 2001 investiga o tempo gasto na execução de tarefas domésticas, chega-se à conclusão de que, no Brasil, esses afazeres corresponderam, em média, a 11,2% dos PIBs brasileiros do período 2001-2005.”


Ficou meio complicado? Vou tentar simplificar a ideia deste estudo. Pela sua história de vida, seu pai foi um homem forte e humilde que viveu em situação de pobreza e instabilidade financeira, muito comum ao pequeno agricultor do interior do Brasil. Ele provavelmente foi responsável em construir sua casa da infância, um espaço que lhe proporcionou abrigo e proteção, apesar das dificuldades. Se seu pai tivesse condições, ele talvez pagasse uma pessoa para fazer este serviço. Isso lhe pouparia tempo e lhe daria a possibilidade de dedicar-se mais ao seu cultivo ou à carreira dos filhos. Como seu pai não teve essa possibilidade, a atividade saiu de “graça” porém, o valor dela não precisa ser anulado por conta disso. Por exemplo, se um pedreiro cobrasse R$300,00 para levantar uma parede da sua casa e expandir o telhado, formando uma pequena garagem, isso significa que o trabalho “gratuito” do seu pai teria o valor de R$300,00. Você acha que seu pai se sentiria orgulhoso em saber que todo o trabalho “gratuito” que ele fez tinha um valor? Ou só o afeto contaria?


Seguindo este pensamento, eu queria que você refletisse no trabalho diário da sua ex-mulher. Enquanto você estava imerso em ensaios, programas de TV e shows por cidades do Brasil inteiro, como estavam aquilo e aqueles que você ficava distante durante este período? Sua casa, seus pertences, seus filhos, sua família… Quando você voltava de uma rotina artística exaustiva, tudo estava bem cuidado e tratado? A quem se devia isso? Com certeza a Zilú. As três refeições mínimas diárias para 3 crianças diferentes, suas rotinas com médico, escola, cursos e lazer, o amparo emocional e psicológico nas diferentes fases de vida, além da administração da casa e dos bens da família, tudo isso provavelmente estava nas mãos de uma pessoa de confiança, sua ex-mulher, que após alguns anos teve o privilégio de contratar profissionais que a auxiliaram neste processo, porém, o gerenciamento de tudo ainda era tarefa dela. Ou, por acaso, antes de um show você se preocupava se a Wanessa tinha tomado seu remédio, a Camila estava indo bem em Matemática ou se o Igor ia gostar das aulas de karatê?


O que este artigo apresenta é que todo este trabalho feito pela Zilú por anos, sem salário, férias ou quaisquer direitos trabalhistas teve uma contribuição econômica no país, afinal ela cuidou perfeitamente de três cidadãos brasileiros que em vida adulta e produtiva estão entregando a sociedade seus talentos e fazendo a roda da economia girar, seja através do pagamento de impostos, da participação profissional e até da expansão econômica ao gerarem empregos através de suas funções. Será que uma atividade que entregou tanto ao Brasil não merece ser reconhecida e valorizada economicamente?


Você não acredita na colaboração da Zilú na formação do seu patrimônio porque, afinal de contas, ela não trabalhava formalmente com você na produção de seus discos e shows. Mas, vamos dizer que sua história fosse outra e, mesmo com três filhos e uma casa para cuidar, Zilú decidisse trabalhar com você, fortalecendo diretamente sua carreira e recebendo um salário como funcionária de sua empresa. Nas horas que ela estivesse ocupada profissionalmente, quem estaria fazendo as atividades que competem aos cuidados dos seus filhos e sua casa? Vamos dizer que você contratasse um profissional para isso. Na verdade, vários profissionais. Um para gerenciar a casa, outro para cozinhar, outro para limpar, outro para olhar seus filhos, outro para levá-los à escola, outro para organizar seus cardápios, outro para acompanhar seus dilemas pessoais e assim por diante. Provavelmente você precisaria de um exército de bons profissionais para acompanhar tantas questões que precisariam ser cuidadas enquanto vocês trabalhavam. Cada um destes funcionários receberia um salário equivalente e por mais que muitos deles desenvolvessem afeição, amor e prazer no que faziam e nas pessoas que cuidavam, isso não impediria você de fazer a sua parte de oferecer e dar o retorno financeiro que eles mereciam, certo?


E com esse comparativo eu quero finalizar te explicando que o trabalho doméstico e familiar de sua ex-esposa equivale medianamente - afinal, lembre-se, não havia férias, folgas ou qualquer pausa sobre ele - a soma que você pagaria por esses profissionais por mais de 30 anos. E agora, Zezé? Como um bom homem de negócios que você é, somado a sua veia romântica, pague amorosamente a sua ex-mulher e reconheça que, sem ela, você talvez conseguisse construir uma carreira musical bem sucedida, mas não teria por perto o bem mais precioso de sua vida: uma família e um lar feliz, amparado e bem cuidado.


* Karla Fontoura - Comunicóloga formada na UNEB, graduando em Pedagogia pela UNOPAR e escritora baiana de textos informativos e poemas, palestrante, tradutora, mãe feminista de Kabir. Colunista dos blogs Não me Kahlo e Mães que escrevem. Pessoa não-binária (ela, ele, elu) e pansexual. Luto pelas mulheres e as crianças e busco conectar informações relevantes para mudanças de consciência e comportamento.

Instagram: @karla.expansiva.dilacerante



Referências

[1] Fonte: https://www.comprerural.com/conheca-a-fazenda-mais-linda-do-brasil/ [2] MELO, Hildete Pereira de; CONSIDERA, Claudio Monteiro; DI SABBATO, Alberto. Os afazeres domésticos contam. Economia e sociedade, v. 16, p. 435-454, 2007.

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