Xuxa, a “Rainha dos Baixinhos”, concedeu entrevista a um podcast essa semana e falou muito. E bem! Entre outros assuntos, comentou sobre sua participação no polêmico filme “Amor, Estranho Amor”, uma pornochanchada lançada em 1982, que falava sobre um garoto de 12 anos que se apaixona por uma prostituta de 16 anos interpretada justamente por Xuxa. Por muitos anos, ela foi acusada de pedofilia (!!!) e tentou por várias vezes tirar o filme de circulação até conseguir: o longa-metragem ficou censurado por 30 anos. Ela adquiriu os direitos do filme e assim parou a exibição do mesmo.
Toda essa manobra ocorreu por conta de seu trabalho como apresentadora infantil. Isso poderia acarretar dúvidas e confusões no seu público mirim, visto que seu papel no filme contrastava com sua atividade profissional, já que a personagem realizava atos “indecentes”. Xuxa já revelou recentemente que mantém contato com o então ator juvenil do filme até hoje, o que demonstra a ausência de qualquer trauma quanto aos papéis desempenhados por ambos. Há mais detalhes em “Xuxa, o Documentário” que estreou a poucos dias no Globoplay, onde ela conta detalhes de um abuso sexual sofrido na infância. Esse introito todo é para explanar sobre o tema que me propus a desenvolver a partir desse caso: até que ponto o trabalho de alguem que lida com criança fica prejudicado após a exposição de uma situação intima, seja na tela ou na vida real? Para ajudar nessa análise, utilizo um caso que ganhou destaque anos atrás, envolvendo a professora do ensino fundamental Jaqueline Carvalho.
Tudo aconteceu quando ela foi filmada numa casa de shows dançando o pagode “Todo enfiado”, em cima do palco, com o cantor performando aquilo que a letra da música pedia, enfiando a calcinha no rego de Jaqueline, enquanto ela rebolava como uma dançarina profissional. O vídeo parou nos jornais locais e foi o maior bafafá: ela foi demitida. A professora reconheceu que exagerou e aceitou de bom grado a demissão. O diretor do colégio afirmou que Jaqueline merecia respeito, porém, considerou que a atitude dela na casa de shows “não era adequada para uma professora de educação infantil”. O triste é que ela “se queimou” também no bairro onde morava – e lecionava – e teve que se mudar. Os pais ficaram divididos sobre o assunto, uns considerando que a vida privada dela fora da escola não interessava a ninguém; outros achando que a dança exposta não era postura de uma professora. No fim das contas, ela foi contratada como dançarina da banda (que até hoje não sei qual era!). Esse caso ocorreu em 2009.
Vamos lá... A situação não é de fácil discussão. O vídeo foi parar nas redes sociais e muitos alunos tiveram acesso. Por mais que a vida privada seja pessoal, um acontecimento desses pode adulterar sim as relações mestre – aluno. Muitos confundiriam a diferença dos espaços, imbricando professora e dançarina, muito comum em crianças que não tem maturidade pra separar os papéis sociais. Isso quando os pais não possuem tal discernimento, o que é pior, influenciando os filhos a repudiarem a profissional. Portanto, a professora reconheceu que a performance no palco foi além de suas perspectivas cotidianas, ou seja, não houve resguardo de valores que ela diariamente precisa manter (boa conduta, comportamento exemplar, ética, etc.). Isso, porque a facilidade da captação da vida de qualquer um pelas lentes de um aparelho celular cria noções de julgamento, e no caso de uma profissional de ensino infantil , aí é que sua moral necessita ser 100% ilibada. Há 30 anos atrás, talvez não houvesse repercussão alguma e ela estaria dando sua aula normalmente. E aí é que entra a complexidade da coisa: sua vida pessoal é limitada por sua atividade trabalhista. E ainda mais sendo mulher! Você pode ser amada e adorada por seus alunos, no entanto, um desempenho “indecente” numa casa de espetáculos já basta para detonarem seus princípios.
E assim, muitas carreiras secretas não vão para frente por conta de determinismos sociais. Uma assistente social de um hospital pediátrico não pode ter revelado seus fetiches noturnos, assim como uma diretora de creche não pode se arriscar nos seus dotes de dominatrix. Tudo pode ser vigiado pelas lentes de smartphones e disseminado pelo tribunal da internet. Nesses casos, todo cuidado é pouco, pois no meio disso tudo fica a criançada, esmagada como ostras no meio da batalha entre a maré da sociedade e o rochedo da profissional que precisa se autopoliciar em seus momentos de lazer. No entanto, apesar das complicações envolvidas nas restrições profissionais, o julgamento social fere a todas.
E o que tudo isso tem a ver com Xuxa? Ela afirmou que uma coisa é ficção e outra realidade. Na película, uma menina de 16 anos é “dada de presente” a um político, mostrando a exploração de uma menor. Quando começaram as filmagens, Xuxa estava com 17 anos, sabia pouco da vida, procurando um rumo. Chamaram-na de pedófila, por contracenar com um garoto, misturando justamente ficção e realidade. Foi então, que a Rainha dos Baixinhos deu a deixa. Falou que enquanto a ofendem, “um velho babão de 67 anos, olhou uma menina de 13,14 anos e disse que ‘pintou um clima’. Isso não é ficção. É um gesto de um homem, tarado, doente, com atitudes de pedofilia”. Ela se referia ao ex-presidente Bolsonaro, que em visita a uma comunidade carente, desdenhou de refugiadas venezuelanas. Isso mostra o paradoxo que estamos aqui desvelando. Uma acusação grave a uma atriz em razão de uma interpretação cinematográfica e dança inadequada de uma educadora condenadas por gente que apoiou, seguiu e admirou alguém que mostra desejos indecentes (sem aspas!) por garotas exploradas pela miséria.
O que temos aqui é que duas mulheres que trabalharam com público infantil tiveram vidas dissecadas por conta de episódios bem distintos, acusadas de “indecência”. E Justamente por serem do sexo feminino, suas liberdades são corroboradas por uma sociedade que decreta e determina seus comportamentos, enquanto um presidente da República admite olhares cobiçosos a adolescentes expatriadas, sem oferecer qualquer ajuda ou denuncia de suas tristes condições! E sem o devido escrutínio de suas ações por aqueles que mais defendem a moralidade pública. São faces de uma sociedade, estranha sociedade, toda enfiada na hipocrisia e no cinismo.
FONTE:
https://www.correio24horas.com.br/salvador/professora-que-dancou-a-musica-todo-enfiado-se-diz-arrependida-0809
Carlos, achei interessante o seu texto. São duas mulheres que tiveram suas vidas praticamente destruídas por causa de algo que aconteceu em outro momento de suas carreiras, em suas vidas pessoais, por assim dizer. É curioso como um cara que recebeu críticas não sofreu tanto, nada muito sério. Essas diferenças nos julgamentos hipócritas acabam pesando mais para as mulheres. Achei interessante essa reflexão. Eu não conhecia o caso da Jaqueline e o caso da Xuxa. Lembro que cresci ouvindo coisas como se ela tivesse praticado sexo com um ator quando ele ainda era criança, mas isso não aconteceu. Isso mostra muito como as pessoas pensavam naquela época, e agora consigo entender que a gravação em si não mostrava o menino tendo…
Ótimo texto Carlos. Eu acho interessante o quanto nas democracias liberais essa distinção entre privado e publico faz parte do cotidiano, tá na boca do povo, além de ser apresentada como uma virtude e um direito (É curioso como em sociedades tradicionais essas fronteiras não existem). Por que o privado de alguém deveria determinar sua imagem pública? Não existiriam éticas diferentes? (a ética do público e do privado)? Logo, não precisamos de uma ética absoluta ou universal que atravessa toda a vida de alguém. Ou seja, o que eu faço no privado pode ser o contrário do que defendo em público, mas isso não é um problema, porque não existem valores universais, só contingentes. Mas fico pensando... não seria o…