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O SONHO É O ÚNICO DIREITO QUE NÃO SE PODE PROIBIR

Foto do escritor: Jacqueline GamaJacqueline Gama

 

Em 1971, no manifesto Eztetyka do sonho, Glauber Rocha escreveu que “o sonho é o único direito em que não se pode proibir”. O cineasta utilizou do instrumento da des-razão, o sonho, como a principal arma de revolução nacional, uma vez que se a conjuntura política e social do país poderia retirar a dignidade das pessoas ao jogá-las para a miséria, o sonhar seria um direito inalienável e imprescritível.


Glauber termina o manifesto com Borges, se referindo ao escritor argentino, Jorge Luis Borges, no qual diz: “Borges, superando esta realidade, escreveu as mais liberadoras irrealidades de nosso tempo”, e aí é impossível não recordar dos personagens Pierre Menard ou Funes. Estas e outros figuras borgianas, assim como também os personagens glauberianos, transitavam entre memória e imaginação, tal qual os sonhos que podem se confundir com lembranças.


Neste contexto, se torna impossível não pensar no efeito de real em que o sonho nos pega. Imagens vividas, que dentro da sala do beijo de Morfeu, podem nos revelar o inconsciente de forma vívida. Freudianamente, ali, naquelas imagens, por vezes desconexas, que misturam a memória da realidade e a imaginação, há a revelação do desejo.


O sonho como mirada de desejo é também matéria de mudança. A arte acompanha este itinerário, seja nas narrativas fantásticas de Borges ou na psicodelia de Glauber. O sonho é a rasgadura da sala de espelhos que une criação e memória. O vir a ser com o ser, para corroborar ao viés kantiano.


Se os sonhos aparecem como iluminações dentro de um quebra-cabeças de imagens representadas por nossa mente, ele caminha junto ao esquecimento, e é ele que também promove o efeito de real. Ao invocar o estado fragmentário do sonho, o que sobra? Georges Didi-Huberman, em Diante da imagem, após citar uma passagem de Freud, acerca da matéria do esquecimento como intrínseca ao sonho, aprofunda:


“O regime de representação só funcionária ali sobre um leito de restos noturnos, esquecidos enquanto tais, mas fazendo matéria de olhar. Ou seja. Fazendo-nos reconciliar, no espaço de um resto ­­― ou no tempo de um resto―, com a essencial visualidade da imagem, seu poder de olhar, de ser olhada e de nos olhar ao mesmo tempo, de nos cercar, de nos concernir.” (Didi-Huberman, 2017 [2013], p.207, grifos do autor)


O sonho, então, poderia ser o espelho de nossa própria alma visualizada pelo reflexo de nossos olhos, para corroborar com a citação de Panofsky, evocada por Didi-Huberman (2017 [2013], p.187), também capítulo de Diante da imagem, intitulado A imagem como rasgadura e a morte do Deus encarnado: “a relação do olho com o mundo é, em realidade, uma relação da alma com o mundo do olho.”


O sonho seria o entre-lugar que transita o real e o imaginário, a memória e o esquecimento, criando palimpsesto, releituras, sobreposições que se confundem no emaranhado das imagens. Produção intrínseca e involuntária da matéria ser humano, como a fome e a defecação. O sonho realmente nunca nos poderá ser arrancado porque faz parte daquilo que somos individualmente e coletivamente.


Assim, lutar pelo sonho, é lutar pela vida na sua forma mais sútil. Lutar pelo sonho é também lutar por uma arte que permite a rasgadura do sonho, e que se abre para as recriações por cima do passado, e que pode se confundir com já visto, tornando-se um deja-vú do imaginário.


REFERÊNCIAS:


DIDI-HUBERMAN, Georges [2013]. Diante da Imagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

ROCHA, Glauber [1971]. Eztetyka do sonho. Hambre-espacio cine experimental. 2013. Disponível em:< https://hambrecine.com/wp-content/uploads/2013/09/eztetyka-do- sonho.pdf>.


Imagem de capa: Pintura, Remedios Varo, Still Life Reviving (Naturaleza muerta resucitando), 1963. Tradução livre: Natureza morta em ressucitação. Disponível e retiradaem: https://www.artic.edu/articles/1150/remedios-varo-s-still-life-reviving-naturaleza-muerta-resucitando


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