Li recentemente o Descolonizando Afetos: experimentações sobre outras formas de amar, de Geni Núñes, e a autora alugou não um triplex, mas um condomínio inteiro na minha cabeça. Pensei que era um livro sobre não monogamia, e é, mas vai muito mais além: discute toda a lógica colonizadora por trás das relações. O livro é incrível e já fica minha recomendação, mas hoje quero tratar de um tema específico tangenciando pela obra: a supervalorização de nossa sociedade sobre o amor romântico.
Ele está em todo lugar
Nas séries, nos filmes, nas novelas, nos livros, nas músicas: o amor romântico é praticamente onipresente. Mesmo que não seja o tema central de um produto cultural, é muito comum o protagonista sacramentar sua jornada do herói se unindo à mocinha ou ao carinha. Isso sem contar o próprio “felizes para sempre” dos contos de fadas, povoando nosso imaginário de que a felicidade final só se concretiza quando encontramos nosso par romântico.
É claro que cada pessoa absorve essa ideia da própria maneira, mas não dá para negar que há um esforço coletivo da nossa cultura para que a gente compreenda o amor conjugal como uma das questões fundamentais para a felicidade do sujeito. Tanto que existe até um certo espanto quando alguém diz nas mesas de bar que está feliz sozinho, que não busca ninguém e que está de boa. E nunca conheci ninguém que passou por isso sem antes se decepcionar no amor. Parece que todas as pessoas de nossa sociedade se apaixonam em algum momento da adolescência, sonham em estar com alguém monogamicamente, e só depois questionam, ou não, essa ideia. Mas seria essa paixão, essa projeção da felicidade em torno do par romântico, algo natural?
Hormônios, feromônios e desejos sexuais são naturais, mas o significado que damos às nossas pulsões não são. Somos condicionados a projetar a experiência do amor conjugal como uma das mais importantes para a nossa felicidade. Nossa cultura já é super sexualizada, mas na hierarquia de nossos valores, é muito mais nobre quem se satisfaz com uma só pessoa, quem sossega, quem constrói uma história longa com alguém. Bodas de ouro é: uau! Agora, uma pessoa que passa 50 anos sem nenhuma relação amorosa, a gente estranha, tem até dó. Já completar 50 anos de amizade com alguém, nem nome tem. Por quê?
“Vou procurar doença para mim?”
Se a gente se propor a eliminar ao máximo nossas expectativas em torno do amor romântico e analisar friamente a questão, podemos chegar a conclusões bem interessantes. Pense bem na cilada que é projetar a própria felicidade em torno da união afetivo sexual com alguém. A experiência etérica e mágica do amor é sempre muito menor em comparação à dinâmica da concretude. Existe o amor, mas também existem contas para pagar, traumas de infância, ciúmes, conflitos de visão de mundo, conflitos de agenda, etc, etc, etc.
Circula pela internet uma fala antológica de Dercy Gonçalves que resume isso muito bem: “Amar? Deus me livre de amar quem quer que seja! O amor dói, amor é sofrimento. E eu vou procurar doença para mim?”
Agora, se você acha que esse texto é um manifesto pelo fim do amor, achou errado, querido leitor. O amor romântico existe, é parte da existência humana – seja cultural ou natural, não pode ser suprimido, e também não acredito que deva ser. Mas pode, com certeza, ser reelaborado para encontrar um espaço saudável dentro do ser.
Por você não largo nada
Estar unido afetivo-sexualmente com outra pessoa é muito gostoso, mas tem inúmeras limitações quando pensamos na complexidade das necessidades humanas. Precisamos de chamego, mas também de dinheiro. De comida, diversão e arte. De atividades físicas. De descanso. De amigos. Do desenvolvimento de nossos dons e habilidades. De pessoas que nos acolham e que puxem nossa orelha. De conexão espiritual, cada um à sua maneira. Um amor que suprime, que cria barreiras para qualquer aspecto que integra a existência humana, ou que tenta a impossível tarefa de centralizar todas essas necessidades em uma única pessoa, não é um bom negócio.
Acredito que o lugar saudável do amor romântico é aquele focado nas particularidades desse tipo de relação: a sexualidade, o prazer da companhia, a intimidade, os desafios próprios do encontro entre dois universos distintos. Se um colaborar às demais necessidades do outro, que benção, mas que o parceiro não seja responsabilizado por deixar de nutrir necessidades que não lhe competem.
E tudo isso depende de uma profunda descolonização dos afetos e da luta política contra todo tipo de opressão. O ideal do amor romântico é adoecedor às mulheres, especialmente mulheres negras, e pessoas que fogem aos padrões valorizados culturalmente, seja por conta da identidade de gênero, expressão de gênero, constituição física etc. E se por um lado é negado o amor a tantas pessoas, por outro, a “realização” desse amor muitas vezes apenas perpetua as violências que sustentam o poder do colonizador.
Geni aponta, em Descolonizando Afetos: “Por séculos, homens cis-hétero se valeram da monogamia para chantagear mulheres, pagando simbolicamente o trabalho recebido gratuito com a prometida e supervalorizada exclusividade sexual”. Em função desse amor ideal, e seu papel na reprodução da família e do capital, violências se perpetuam e pessoas abrem mão de seus sonhos, projetos e desejos. “Por você eu largo tudo”, em troca de migalhas.
A reelaboração de um lugar saudável para o amor é tarefa de cada um, mas inseparável da luta coletiva. São descolonizações internas e externas, uma nova concepção de viver com menos sentidos de posses e mais redes. Que a gente se fortaleça para descolonizar afetos e viver o amor com liberdade e autonomia, se é que é possível separar essas palavras.
Fiquei pensando na reelaboração do amor romântico, sabe? As vezes acho que esse processo é encontrar um novo lugar para o amor. Assim como você cita no final: descolonizando-o, encontrando outro conceito que não o “romântico“.