Djamila Ribeiro em reportagem para a Folha de São Paulo, no dia 01 de dezembro de 2022, causou controvérsia na internet ao condenar o termo “pessoas que menstruam” por esse estar invisibilizando mulheres cis. Ainda, no texto, a teórica feminista e representante do movimento negro fez analogias com momentos da história em que mulheres negras não eram vistas como mulheres por suas vivências serem opostas as de mulheres brancas, isso nos idos do final do século XIX.
Também, a intelectual fez uma mea culpa quando citou homens trans, talvez intuindo não ser taxada de transfóbica, inclusive essa parte só fui saber ao de fato ler o texto já que a maioria das respostas à fala de Djamila a imputavam como transfóbica sem citar esse momento que a filósofa comenta sobre os homens trans.
Não escrevo aqui com o intuito de defender o posicionamento de Djamila, na verdade, o contrário, penso que a pesquisadora foi infeliz em suas colocações, principalmente ao forçar conexões sem lógica com a pauta e ler a expressão de uma forma completamente equivocada, já na abertura do texto ela diz:
Recentemente tenho visto publicações e posts em redes sociais que utilizam a expressão "pessoas que menstruam" para se referir a mulheres e homens trans. Também já vi coisas como "pessoa gestante", "pessoas com mamas" com o mesmo objetivo. Confesso que me senti profundamente incomodada, tanto como mulher quanto como teórica feminista. Como mulher, me perturba o fato de sermos restringidas às nossas funções biológicas, como se não fôssemos seres humanos completos, seres sociais e sujeitos políticos.
Gostaria que Djamila tivesse explicado mais a questão quando fala da mulher ser restringida a funções biológicas pelo uso amplo da palavra “pessoas” ao invés de mulheres. Por que o termo eliminaria a humanidade e a função social feminina se a própria palavra “pessoas” inclui mulheres cis? E por que seria excludente se a expressão inclui pessoas não binárias, homens trans e mulheres cis? Talvez o argumento esteja implícito no segundo parágrafo, vamos ler antes de analisá-lo:
Uma mulher não é uma pessoa que gesta, até porque existem mulheres que não podem ou não querem engravidar. Nesse caso, como vamos nos referir a elas? "Pessoas que não gestam?" Mulheres que precisaram retirar as mamas por motivo de doença ou qualquer outro serão chamadas de que forma? Isso remete ao sexismo biológico tão bem explicado por Simone de Beauvoir em "O Segundo Sexo". É interessante que a categoria homem segue intocável —não há publicações se referindo a eles como "pessoas que ejaculam", por exemplo.
Repare que aqui ela esqueceu totalmente a categoria de homens trans e pessoas não binárias — do primeiro parágrafo, reduzindo a questão apenas para mulheres cis. Porém considero que a teórica almejava tecer um argumento contra o paradigma masculino cisgênero, porque em geral essas pautas de gênero neutro parecem abarcar mais as questões que são comuns ao universo das mulheres cis. Digo isso partindo de comentários das feministas radicais que pensam que as mulheres trans e pessoas não binárias se apropriam do que é feminino, claro que não estou de acordo com isso, no entanto trago o argumento para percebemos amplamente a análise.
Reitero que nesse lugar de observadora e crítica do fato não posso me ater apenas a uma única visão. A questão de Djamila é mais em baixo, de fato, ela não está errada quando vemos uma popularização da pauta das questões das mulheres cis para o universo dos transmasculinos e não binários, principalmente para aqueles corpos que nasceram com o sexo biológico feminino, mas se identificam de outras formas que não como mulher. Porém não concordo com a visão dela de que isso promoveria a invisibilidades dos corpos femininos cisgênero.
Djamila foi infeliz porque se essa foi a sua intenção de crítica; falar da não inclusão das pautas dos homens cis no universo do gênero neutro e do oposto em relação as pautas do universo cis femino que se estende ao universo da neutralidade de gênero, ela partiu do pior ponto de vista, atacar os grupos oprimidos e não o grupo opressor em potencial: homens cisgêneros. Ela poderia ter feito sua análise sobre não falarmos de “pessoas que ejaculam” ou “pessoas com próstata” sem atacar a pauta da diversidade de gênero.
O culpado pela invisibilização das questões do gênero neutro é o próprio sistema sexista e machista, não as pessoas trans e não binárias refens desse CIStema, a qual são ofendidas pelo argumento de Djamila. Inclusive porque esses grupos marginalizados na nossa sociedade não gozam de privilégios. As complicações não se restringem apenas a pessoas não binarias que nasceram biologicamente com o sexo feminino.
Mulheres trans e pessoas não binárias, que nasceram biologicamente do sexo masculino, mas que não se identificam como homens, podem ejacular e podem ter próstata, porém essas questão são invisibilizadas, prejudicando o cuidado com a saúde dessas pessoas , diferentemente do que propõe Djamila Ribeiro, quando mostra aversão em seu texto pelas pessoas não binárias e transforma a pauta em uma espécie de privilégio de não binarismos.
Então, talvez o caminho argumentativo devesse ter enveredado para outros campos como: por que não neutralizamos a pauta de gênero? Por que só as pautas das mulheres cis são neutralizadas e a dos homens cis não? Como o machismo age sobre a pauta de gênero? Vários outros caminhos seriam possíveis, principalmente para alguém que defende e atua no campo da interseccionalidade.
Pensando nisso gostaria de fazer uma observação; as pautas que envolvem construção biológica não se restringem a mulheres ou homens cis, uma vez que sabemos que existem um leque de identidades a serem performadas, cito algumas: queers, agêneros, trans, pessoas não binárias, boycetas, travestis.
Porém, apenas as pautas que antes eram de mulheres cis estão sendo neutralizadas e aí há um problema, não para as mulheres cis, já que elas são englobadas nas pautas de gênero neutro, embora Djamila não concorde com isso. Para ela seria necessário marcar o gênero para garantir as pautas, entretanto, antes de generalizar, não seria o caso de pensar qual pauta realmente necessita ter o gênero marcado?
De fato, o feminicídio, outro argumento que ela traz, é uma pauta da mulher cis, provavelmente também das mulheres trans, mas não de todas as pessoas que nasceram com o órgão sexual feminino, já que muita dessas não são e não querem serem lidas como mulheres. Porém, a não neutralização das pautas biológicas, como a menstruação ou até mesmo exame de próstata, são perdas para a sociedade, pois um grupo de pessoas não serão atendidas porque estão sendo invisibilizadas pelas pautas cisgêneros.
Nesse caso, além do “pessoas com ovários”, “pessoas que menstruam" e “pessoas com mamas”, realmente deveriam existir as pautas “pessoas com pênis”, “pessoas com próstata”, “ pessoas que ejaculam”, afinal, mais do que apenas homens cis, existem pessoas não binárias que entram nessas categorias biológicas, mas não seria necessário excluir homens cis para falar dessas pautas, assim como não é necessário excluir mulheres cis das pautas biologicas, e aí podemos fazer outro questionamento: pessoas cis são excluídas de alguma forma na nossa sociedade?
O outro argumento de Djamila sobre a problemática do “pessoas que mestruam” foi a questão da pobreza menstrual. É fato que ela existe e não afeta apenas mulheres cis. Porém é gritante a diferença de pessoas não binárias e mulheres cis que se encaixam nessa pauta, pois meninas deixam de ir para escola porque não tem como arcar com custos para absorventes e materiais de higiene pessoal, assim como mulheres em situação de rua e que vivem em extrema pobreza não podem exercer suas atividades cotidianas e sua dignidade.
Porém dizer que ela pertence apenas a mulheres cis ou que deva ser transformada em um totem de feminilidade é covardia já que homens trans e pessoas não binárias, que nasceram biologicamente como mulheres, também podem sofrer com essa questão. Para resolver o problema de um é preciso excluir o outro? A dor de uma pessoa é maior que a dor de outra?
Resposta negativa para as duas perguntas. Imagina quantos pessoas não binarias também não deixam de fazer suas atividades por menstruarem, e para muitas delas além da menstruação ser algo incomodativo por conta das cólicas e o próprio fluxo de sangue, ela acaba marcando uma identidade feminina cis e isso pode gerar gatilho de disforia, ou seja, além das questões que as mulheres cis passam, existem outras que podem ser acrescentadas a pessoas trans e não binárias. E o contrário? Pessoas que não menstruam são invisibilizadas com o termo?
Lendo o argumento de Djamila Ribeiro parece que mulheres que não menstruam seriam menos mulheres porque são pessoas que não menstruam. Mas de que local ela está falando o termo ‘pessoas’? Em alguns momentos parece que Ribeiro faz uma leitura de ‘pessoas’ tendo em vista a ideia do homem cis como pessoa na sociedade e aqui tento rememorar ao conceito de ‘pessoa’ pré-sufrágio feminino, momento em que mulheres cis não tinham o mesmo direito que homem cis.
Em outros momentos, em oposição, não parece ser essa a ideia de pessoa que ela utiliza para justificar seu posicionamento, inclusive, ela tentar fazer uma analogia com a luta feminista de mulheres negras nos E.U.A em oposição a mulheres brancas. É como se a visão não humana que a sociedade tivesse da mulher negra retornasse alegoricamente em forma de despolitização quando não marcamos o gênero feminino e optamos pelo neutralidade. Como se estivéssemos vivendo o retorno do não humano agora em uma versão pessoas versus pessoas não binárias. Tanto que ela cita o caso de Sojouner Truth, uma grande ativista abolicionista, no ano de 1841:
Na Conferência dos Direitos das Mulheres, fez um discurso histórico chamado "E Eu Não Sou uma Mulher?", enfatizando a necessidade de se pensar nas mulheres negras como categoria e refutar uma ideia universal de mulher. Truth fala da realidade dela como mulher negra confrontada com a realidade apresentada sobre as mulheres brancas e termina perguntando "e eu não sou uma mulher?", mostrando o quanto a realidade das mulheres negras nem sequer era mencionada.
Partindo do pressuposto argumentativo da teórica ela diz que Universalizar a pauta tornaria a categoria mulheres cis invisibilizadas, mas como assim usar o termo “pessoas” tornaria menos humanas mulheres cis que não menstruam ou que não tem ovários ou mamas? De que forma isso seria excludente? Sinto que essa é uma contradição de sua fala, porque apesar de mulheres cis serem invisibilizadas pessoas trans também o são.
O argumento de Djamila me parece forçado para interseccionar e no final do texto já parece sem lógica. Também me pergunto como colocar ou retirar pessoas de uma categoria sem marcação de gênero seria sexista? De fato, aqui não tenho resposta porque não me pareceu coerente. Em alguns casos o enquadrar pessoas em categorias seja necessário para lutar por pautas e quando desmarcamos essas categorias as pautas parecem se espraiar e perdem força, entretanto, nesse caso da menstruação, não marcar o gênero não seria fortalecer a pauta e ampliá-la?
Pessoas menstruam, não apenas mulheres, inclusive, no meio dessa enxurrada de comentários vi depoimentos de homem trans e pessoas não binárias que disseram que quando eles retificam os documentos (de feminino para masculino) perdem direito ao ginecologista no SUS, isso também não seria um apagamento da pauta? E uma não democratização das questões da saúde pública para essa categoria?
Ao incluir pessoas que menstruam ou pessoas que ejaculam não estaríamos também fortalecendo uma mudança no nosso sistema de saúde pública, no qual pessoas trans e não binárias talvez pudessem sentir mais liberdade de consultar um ginecologista ou proctologista sem tantos constrangimentos, exercendo seus plenos direitos?
Defendo a pauta das pessoas que menstruam e eu também sou mulher.
REFERÊNCIAS
RIBEIRO, Djamila Nós, mulheres, não somos apenas 'pessoas que menstruam'. Folha de São Paulo. 01 dez 2022. Disponível em:<https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-ribeiro/2022/12/nos-mulheres-nao-somos-apenas-pessoas-que-menstruam.shtml> Visualizado em: 03 dez. 2022.
IMAGEM DE CAPA: Ilustração Marta Pucci. Disponível em: < https://helloclue.com/pt/artigos/lgbt/como-e-a-menstruar-para-uma-pessoa-trans/> Visualizado em: 03 dez. 2022.
Texto super esclarecedor! Deveria chegar até a Djamila porque acho que você apresenta seus argumentos com seriedade, sem necessidade de julgar a autora. O ponto chave é mesmo como ela, infelizmente, voltou-se aos oprimidos e nãos os opressores e acho q isso faria toda a diferença.
Ótimo ensaio, Jac. Bem detalhado na análise. Gostei muito como você dissecou cada parte do argumento de Djamila, ao invés de sair pela tangente com alguma crítica vaga e apressada. Na verdade, é isso que a ciência social faz, ou melhor, deveria fazer. Seu ensaio não se dissolveu no pragmatismo cotidiano, na pressa das pessoas lá fora em definir as coisas. Tenho só uma pergunta. O que você acha do rótulo "transfóbica" atribuído à Djamila? Eu sei que ela pode ter falhado na crítica, mas isso faria dela transfóbica? Por exemplo, se alguém critica o essencialismo de parte do movimento negro, inclusive com a ideia de ancestralidade, esse comentário seria racista? Ou se alguém critica a ideia de natureza metafísic…