Quando a Poliana passa do ponto
Quem nunca se viu “impulsionada/o” a estar sempre feliz e positiva/o, que atire a primeira pedra. Isso acontece por aí, leitora/leitor?
Não é de hoje que somos incentivadas/os a jogar as emoções desagradáveis (veja que não escrevi ruins) para debaixo do tapete. O famoso “engole o choro; ficar com raiva é feio, menina; você não tem que sentir medo”. Qualquer semelhança é mera coincidência, viu!
Vou explicar o porquê de não ter escrito emoções ruins.
Raciocinem comigo, leitores:
Imagine se você se encontrasse à beira de um desfiladeiro e não tivesse nenhum pingo de medo. Imaginou? Quais poderiam ser as consequências? Talvez você andasse muito perto da borda, sem cuidado algum e, facilmente, poderia acontecer um acidente, não é mesmo?
Agora vamos a outro cenário, onde alguém que você ama muito falece, mas você não consegue derramar uma miséria lágrima, só lhe brotam sorrisos e gargalhadas. Em meio à tristeza do momento, você vai fazer um pic nic dançando funk na beira da praia. Não sente nada.
Por fim, pense em como seria acordar um belo dia com ansiedade zero. Você não se sente que precisa fazer nada. Fica na cama, sem preocupação alguma. Não liga o computador, não faz suas tarefas do home office ou não vai pro trabalho, não estuda pra prova, nem prepara o almoço.
E então, ainda acha que a ansiedade, tristeza e medo são ruins?
“E você vai me dizer que são boas?!” – você pode estar pensando.
Como coloquei antes, elas são desagradáveis. Afinal, ninguém gosta de ficar triste, com medo, raiva ou ansiedade.
Entretanto, leitores , todas elas são bem necessárias para o equilíbrio emocional. O importante é entendermos como regular a intensidade de cada uma, como lidar com elas.
Mas para além de explicar que nem só de alegria vive o homem/mulher, o que eu quero questionar no texto de hoje é a Positividade Tóxica. Já ouviu falar nisso?
Pois é, esse é um termo relativamente novo, usado para definir a prerrogativa social de estar sempre bem e vendo o lado positivo de tudo, reprimindo o que há de “negativo” na vida e internamente.
Seria o alargamento do que chamamos na psicologia de invalidação emocional.
Quando você se força a não sentir uma emoção desagradável ou a taxa como ruim, desnecessária, se culpando ou julgando ser fraca/o por senti-la, está invalidando sua emoção.
Assim como quando você não está bem e alguém fala para ter gratidão e ver o positivo da coisa, que não precisa ficar triste por isso, ao invés de te escutar e acolher. Isso também é invalidar emocionalmente.
Ou seja, a Positividade Tóxica seria o fenômeno social de exigir leveza, gratidão e alegria o tempo todo: Good vibes only!
Only? Somente? Ninguém é feito de apenas boas vibrações, um ser de luz eterna e flutuante, gente!
É interessante eu estar escrevendo sobre isso aqui, pois a minha abordagem de trabalho (Terapia Cognitivo Comportamental) nos convida a mudar a forma de ver e pensar as coisas, inclusive o pensamento sobre nós mesmas/os. E as pessoas muitas vezes acreditam que ela se trata exatamente disso: olhar o lado positivo de tudo, tipo o jogo do contente da Poliana - livro de Eleanor H. Porter, publicado em 1913 e considerado um clássico da literatura infanto-juvenil.
Para você entender melhor essa analogia, aqui vai uma pequena sinopse:
"Poliana, uma menina de onze anos, após a morte de seu pai, um missionário pobre, se muda de cidade para ir morar com uma tia rica e severa que não conhecia anteriormente. No seu novo lar, passa a ensinar às pessoas o "jogo do contente" que havia aprendido com o seu pai. O jogo consiste em procurar extrair algo de bom e positivo em tudo, mesmo nas coisas aparentemente mais desagradáveis."
Mas não se trata disso, e sim de ver a realidade além das nossas percepções distorcidas.
Se as coisas não estão bem de fato, vamos procurar lidar com elas como são, não pintar de cor de rosa - não se engane, isso não é TCC.
Deixando esse adendo de lado, quero falar das consequências que essa positividade exagerada pode provocar para nós.
Negar os aspectos e emoções desagradáveis na sua vida só vai aumentar a gravidade disso lá na frente. Como assim?
É simples. Sabe aquela goteira que vai enchendo de pouquinho em pouquinho até que o balde transborda? Assim também acontece com nossas emoções difíceis de lidar.
Um dia você engole um choro por vergonha dos colegas do trabalho, no outro segura a raiva dentro de casa, depois não permite que seu medo apareça, porque tem que ser corajosa/o. Quando você se dá conta, seu “balde” transbordou num ataque de pânico, numa crise de depressão ou numa explosão de raiva.
Além disso, o nível de empatia das pessoas tende a diminuir, posto que não se tolera muito quem não está alegre e animada/o, pode ser até que sua emoção desagradável chegue ao ponto de ser taxada de mimimi.
Good vibes only, na casa da Poliana!
Na sua casa é vida real, feita de dias bons, outros ok, outros ruins. Essa é uma casa normal. Assim como sua “casa" interna, que vai reagir a tudo a sua volta através de emoções, inclusive ficar na bad, se irritar de vez em quando ou sentir ansiedade por causa do corona. Afinal, você não é autômata/o. Ufa, ainda bem né!
Não sentir nada seria terrível! Como estar envolta/o num gigantesco plástico bolha. Até porque se você não sente o que é negativo, como vai identificar o positivo? Como vai sentir alegria, sem tristeza? Tudo é equilíbrio.
Há poucos dias festejamos o Natal que, infelizmente, pode ter sido um exemplo dessa positividade tóxica no seu convívio. As pessoas (naturalmente ou “natoralmente”) imprimem um significado de alegria à época natalina. O fato é que alguns não ficam tão bem nesse período (também no Ano Novo) e podem sentir uma certa melancolia ou até estresse, pelas expectativas internas e externas do momento. Enfim, é cruel, por vezes.
Então não entra nessa onda de Poliana passada do ponto. O mais importante é, independente de qual emoção você sentir, a qualquer período do ano, que ela seja entendida, validada e acolhida por você. Isso sim é saudável e perfeitamente normal. O resto é conversa pra boi dormir. E se precisar, procure ajuda, tá?
Imagem:
https://rmcholewa.com/2020/08/14/positividade-toxica/
Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pollyanna