Uma mensagem chega. Um amigo morreu. A dor da morte dele me atravessa e penso: “Meu Deus, a vida é um sopro…”. As mensagens seguem. Ele tirou a própria vida. Então, me vejo com a instância de remendar o ditado para algo que me assombrou por muitos anos: a vontade de viver pode ser um sopro..
É preciso coragem para parar tudo o que eu estava fazendo, incluindo descansar minha mente da rotina maçante ao longo do ano, para escrever esse texto. Respiro fundo e encaro a oportunidade de falarmos sobre o sujeito que carrega na alma a angústia do não-viver e que, por vezes, se traduz num ato tão brutal e catatônico como mudar a ordem da vida para fechar a porta da vida.
Eu não queria que meu amigo querido falecesse, muito menos que seu próprio ímpeto fosse a causa para tal, mas, consigo entender todas as linhas que costuraram a sua dor para dizer a si mesmo que não havia motivos para viver. Convivo com isso desde a adolescência. Uma menina de 15 anos, com poucas perspectivas sobre o futuro e ninguém maduro para conversar. Era arrastada pelas tarefas cotidianas e seguia perplexa ao ver que todos caminhavam imunes à angústia que ela carregava. Uma dor tão precisa que consideraria ilegal na existência, se detivesse tamanho poder. Ninguém merece carregar esse absoluto fardo do não-viver.
Poucos falamos como a vontade de viver pode ser algo tão raro nas vidas de muitos entre nós. Parece que cogitamos o fato de que, apenas por nascermos dotados do fôlego de vida, nos tornamos automaticamente preenchidos dela. Ou, talvez, ao saborearmos em uma infância decente as perambulâncias do fascínio pelo entorno, somada a curiosidade instigante, que aceitamos que as cenas dos próximos capítulos irão nos garantir a vontade de viver. Não é assim que a banda toca. Seja em um duas, três ou mais décadas adiante podemos saborear/suportar a dureza do não-viver seguindo nossos passos e caminhos.
Tolamente, cogitamos tantas bobagens sobre o que é saborear a vida e o instinto para tal que, quando somos visitados pelo não-viver, nos enterramos no medo absoluto de sermos os únicos da “festa do universo” a não carregar algum ânimo. Acredito que seja essa força cruel da solidão que mais atormenta o sujeito que convive com o não-viver. Caminhamos como zumbis e nada temos a dizer com os viventes porque achamos que eles nunca experimentaram a angústia esmagadora de vários dias cinzas. Fechamos nossas vistas e olhos sobre a possibilidade de notar os nossos comparsas mulambentos se arrastando pela rua. Erroneamente, nos sentimentos supramente solitários.
Creio que foi essa música maldita da solidão que jogou meu amigo no desespero mais fatal do não-viver. Ele queria viver. Ele sabia viver. Mas, de repente, o tal fôlego virou um sopro. Um sopro de viver foi o que restou. Ele não aguentou. Ele não suportou.
Eu me imagino olhando para ele, no instante mais enlouquecedor de sua angústia, para dizer aos seus olhos que eu sei o que estava acontecendo ali. Que eu via o que ele via. Que essa visita de mau gosto me atravessou inúmeras vezes e que sei que nunca sumirá completamente da minha existência. Virou parte do que sou. Ficou pausada num instante e sei olhar para ela com a doce compaixão que olho para as marcas de sobrevivência das emoções mutiladas em um quarto escuro. Eu queria que ele soubesse que viver, por vezes, é um sopro mesmo, uma fração de ar no segundo e que somos todos um pouco desse ímpeto de sobreviver combinado ao abandono de seguir vivendo. Queria abraçar a sua não-vida contra a mim e falar com ela que somos irmãs e parceiras nessa maculada tentativa de entender nossa existência.
São muitas conversas, muitas palavras que estou aqui ecoando para ele. Escrever esse texto é uma forma de registrar uma contorção da linha tempo e, embebida de fé, acreditar que isso pode ter um efeito onde quer que ele esteja. Para os que lêem, esses verbetes são rasgos do meu coração que anseiam por se somar a qualquer ser pelo mundo que possa acompanhar o que escrevo e aliviadamente dizer: a vida é um sopro - e a vontade de viver pode ser um sopro.
Fonte da imagem:
https://www.infosalus.com/salud-investigacion/noticia-momento-ano-hora-cuando-disparan-pensamientos-suicidas-principios-verano-madrugadas-20230616172137.html
Texto extremamente necessário. Precisamos falar seriamente sobre isso. Parabéns.
Adisvari/Áurea