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QUEM SÃO OS DEBOCHADOS?



Baseada no texto de Millôr Fernandes: computa, computador, computa, a peça Deboche estreou no Teatro Gregório de Mattos em Salvador, dia 16 de junho de 2022, contando com a direção de Paulinho Machado, a peça é o objeto dele de pré-formatura em direção teatral pela escola de teatro da UFBA.


Participam em cena a atriz: Walerie Gondim e os atores: Heder Novaes, Victor Sampaio e Rodrigo Villa. Destaco a força do olhar em cena, que soa como um diálogo com a plateia. Algumas vezes cheguei a pensar: “Isso faz parte da peça”? “Eles estão atuando ou saíram da personagem”? Ao decorre da apresentação, percebo que eles estão brincando com a ideia de real e ficcional que o próprio objeto cênico se propõe a jogar no tablado em uma encenação dinâmica e amorfa em que os personagens são transeuntes.


A própria ideia de movimento, não lugar e desconstrução ronda a todo instante a atmosfera teatral. Desde a primeira história que soa distópica, uma mulher que nasce de forma natural por um casal heterossexual choca a população que já não tinha mais contato com o parto como nós conhecemos, até a hiper vigilância dos sensores que comandam aquele possível Brasil ditatorial. Eles vestidos de uma forma bem kitsh e espalhafatosa (destaque para a calcinha fio dental aparecendo sob a calça de um dos atores) beirando um universo drag queen em Blade runner ou o Lunga de Bacurau se ele fizesse parte de uma polícia fascista.


Pontuo também que o figurino de PadMateo e a maquiagem de Agamenon de Abreu , a produção musical de Lucas Catu e a direção musical também de Paulinho Machado são pontos altos para essa construção do ato que envolve o espectador, afinal, tudo parece desconstruído demais e ao mesmo tempo insano de se acreditar. Por que pessoas aparentemente tão pra frantex estariam defendendo ideias tão reacionárias?


Em Deboche também senti um pouco de O rei da vela, além da semelhança com a estética brega que o teatro Oficina deu ao texto teatral de Oswald de Andrade, a própria crítica a classe média (como fio condutor do texto) aparece de forma extensiva, compondo com as críticas ao comunismo, mas especialmente ao fascismo e as ideias reacionárias, além de tabus como o sexo e a monotonia do dia a dia. Estamos vivendo ou apenas trabalhando, comendo e comprando coisas para tapar o vazio que nos habita?


Robozinhos que acreditam em mamadeira de piroca (e lá estava ela na braçadeira do capitão) e uma Eleven atriz jogada no meio de um experimento social trágico. A distopia da vida contemporânea. A tragédia do nosso tempo, o culto ao corpo e as máquinas em um mundo hedonista e narcisista, até a pena de morte pode virar um show de horrores.


Sim, isso é muito Black mirror, corpo asfixiado em uma câmara de gás em redes internacionais de computadores. Parece macabro, mas é real e muito do visto, ouvido e apresentado é real no universo fora do ficcional. Ao menos real no campo das ideias, mas qual o próximo passo para que se torne realidade? A parte mais difícil de se acreditar ao assistir ao espetáculo é que poderia ser um deboche, mas realmente há quem acredite em sugestões terraplanistas e fake newZista de sociedade.


A peça exprime limiar entre a ficção e realidade dando uma banana e um tapa na nossa cara. Comecei espantada, ri e no final chorei. A cena toda parece um deboche, porém não somos nós os espectadores que somos debochados (apesar de as vezes acharmos que sim), quem está debochando de nós, afinal?


Espero que Deboche tenha uma segunda temporada convidando mais pessoas a irem ao teatro. Uma salva de vivas a arte nacional e baiana e aos nossos artistas extremamente criativos, os quais infelizmente vivem na corda bamba.


Precisamos de arte para sobreviver a essa onda de morte e de assassinos debochados que habitam os nossos podres poderes e a aqueles que concordam e colaboram com esse projeto de necropolítica. E isso não é um deboche, gostaria que fosse só um texto irônico sobre uma peça teatral "nordestina, brasileira, latina e tecnobregacircenseafropunkfunkeira."


Foto de capa: Victor Hugo Sá. Retirada de <https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/espetaculo-faz-critica-a-elite-brasileira-com-musica-humor-e-sarcasmo/>

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