* Por Fabíola Cunha
Depois do vírus, meu paladar foi voltando aos poucos. A língua armazenando os azedos, amargos, doces, agridoces.
Antes, tivemos que dizer ao meu nariz os cheiros que ele sabia, mas havia esquecido.
Sinta! Isso aqui é:
Cominho,
manjericão,
cúrcuma,
hortelã graúdo,
alfazema,
cambará,
cebola,
arruda,
meia usada,
detergente,
sabão em pó
álcool,
alho,
laranja,
ralo de banheiro.
A mucosa ardendo da insistência.
Não era como uma criança aprendendo a nomear o mundo, parecia alguém com amnésia tentando alcançar suas lembranças, sem saber do que deveria recordar.
O ar poderia se perder no caminho para os pulmões, mas naquele momento, isso não me ocorreu. Meu medo era esquecer o cheiro das coisas e meu catálogo de memórias.
Sem o cheiro da gasolina, nunca mais seria a menina escolhendo filme na locadora perto do Texaco.
Sem guiné, maria-preta e pitanga, perderia o acesso ao quarto encantado da minha bisavó, que me protegia e curava com seu amor, rezas e ervas.
Não veria mais meu avô se barbeando com sua navalha afiada e o rosto coberto de Bozzano. Nem entraria na casa preenchida de cravo e canela da calda que minha mãe coloca nos bolos.
Sem olfato, todas minhas lembranças ficariam trancadas e a chave perdida.
Medo de perder o vento soprando maresia pra Avenida Suburbana, do acarajé fritando, do protetor solar espalhado sob o Sol da Barra ou de Ilha de Maré, da alfazema pedindo bençãos no 2 de fevereiro, livro novo, livro velho, molho lambão, mato amassado nas trilhas diamantinas, sopa no fogo, milho assado no são João.
Quanto em nós é memória olfativa?
Passei 15 dias tentando convencer meu nariz a recuperar o olfato, para poder lembrar de mim.
* Escritora, professora, historiadora, redatora freelancer. Instagram: @fabiolac.cunha
Link da imagem: https://pixabay.com/pt/photos/esteira-temperos-3251064/
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