TEM QUEM DÊ A BENÇÃO, TEM QUEM BATA A CABEÇA
- Áurea Añjaneya
- 4 de nov. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 11 de nov. de 2024

Bom dia, boa tarde, boa noite. Sotero leitore, peço permissão para pisar este chão. Este é meu primeiro texto para este espaço.
Chamam me Áurea, Adisvari ou tia Didi. Todo texto fala mais, e melhor, quando se conhece o local de fala de seu autor. Então: sou mãe respeitosa, preta, mulher, feminista, educadora, progressista, freiriana, militante da proteção à infância, proletária, neurodivergente, roqueira, nordestina, soteropolitana, espiritualista, moradora do Sertão. É daí que falarei. E não limitado a.
Como espiritualista, tenho percepção e concepção de uma ampla existência atemporal entre o “Céu” e a “Terra”. Mas, inserida no formalíssimo mercado de trabalho bancário e numa sociedade que não questiona suas tradições e culturas, e perpetua incessantemente preconceitos e violências já há muito inadmissíveis, ser como eu sou me lembra constantemente das opressoras estruturas socioculturais que nos limitam e nos destroem pouco a pouco. Mesmo na prática social do espiritualismo. Não somos o corpo, diriam meus irmãos. Mas para almas em corpos como o meu (mulher, preta...) os caminhos são bem mais difíceis. Até rir alto é pecado. E, tendo procriado, mais um universo extremamente penoso é desbloqueado ao nosso redor. Existências que incomodam.
Não sendo possível calar as palavras que arranham paredes viscerais, espero que meus textos falem, gritem, sussurrem, por vozes silenciadas, despontecializadas, invisibilizadas, insularizadas. Falarei aqui destas vivências por aí. E convido vocês a passearem e refletirem comigo sobre essas e outras existências fodas: “foda” bom e “foda” ruim, do nosso jeitinho baiano de ser.
Gostaria de começar falando sobre um tema cuja necessidade de ser destrinchado será contemplada em mais escritos futuros, pois muito pouco se reflete, com profundidade, sobre.
A violência e invisibilização da infância
Sendo a infância onde se originam traumas, comportamentos, onde ocorre a formação de personalidades, que à morte provavelmente perdurará caso não haja um trabalho terapêutico, reverberando nos tipos de indivíduos sociais que compõem a humanidade, tem sido minha prioridade falar desta etapa do desenvolvimento humano (incluo a adolescência), e seus silenciamento, invisibilização e violação, almejando que a perpetuação das violências e práticas antipedagógicas e dispedagógicas normalizadas social, cultural e academicamente, nos lares e nos espaços educacionais, sejam interrompidas e transformadas.
O que é ser criança em nossa sociedade? O que tenho observado é que a infância depende de qual infância interior possui o cuidador, aquele que proporciona a infância para a agora criança. Quando me refiro a cuidador, falo daqueles que passam maior tempo com o infante. Seja a mãe, o pai, os avós, os educadores da casa de acolhimento, os professores, e assim por diante. Deixarei as questões sociais e econômicas, muito importantes, para outro momento, e me aterei à cultura da violência, que é de ricos e de pobres, de pretos e de branco, da favela e do condomínio de luxo. Ser criança é depender da “cabeça” de a quem a genética, ou a Lei ou o acaso, lhe designou. Há cuidadores que batem; há os que nem levantam a voz e pedem desculpa. Há os que “castigam” tirando a sobremesa; há os que trancam do lado de fora de casa ao relento, desprotegido. Professores que deixam sem intervalo, que humilham e produzem situações vexatórias para seus alunos.
Por que ainda temos em nossa sociedade uma cultura de educação e cuidado infantil tão discrepante, se já possuímos dados e estudos científicos suficientes para pelo menos criarmos um “piso”, um mínimo de real cuidado à infância, não violento? Leis, Estatutos, tratados, existem. No papel, ou sendo exercidos apenas sob o ferro de instituições sobrecarregadas, morosas e/ou corruptas. Conselhos Tutelares, Delegacias “especializadas”, Secretarias da Educação. Sobrecarregadas. Morosas. Corruptas. Culturalmente, enquanto sociedade, o que estamos fazendo? O que é possível fazer?
Provavelmente a maioria de vocês, leitores, que não é genitor ou adotante jamais se questionou ao ouvir frases como “faz agora, se não vai apanhar”, ou “quando chegar em casa, você vai ver”, “hoje você vai dormir de couro quente”, “só vai sair da mesa depois de comer tudo”, e tantas outras, todas ditas com raiva e em tom e olhares ameaçadores sobre sua eficácia. Mesmo pais e mãe repetem sem se perguntar o porquê. “Quem manda no meu filho sou eu!”, defende-se quem fala. “É assim que se educa!” Eita. Já está comprovado que não. Nós já vimos uma criança apanhar e nada dissemos. Nossa sociedade já avançou, reconheço: todos serão contra alguém bater num idoso, num mulher, ou até em um animal na rua. Mas em uma criança, um ser frágil, vulnerável, fraco... este pode sofrer violência física, verbal e psicológica de seu cuidador. Porque é “para o seu bem”. Será? Alguma coisa de errado não está certa nisso. Vejo este caminho, de diálogo, de aprofundamento teórico, de conhecimento e difusão de experiência como muito auspicioso para erradicarmos nossa cultura de educação violenta.
Então, vamos conversar. Aqui, hoje como graduanda do curso de Pedagogia na Universidade do Estado da Bahia – Uneb, a minha trajetória de vida me traz ao assento de condutora de um mergulho em “o que é a infância em nós”, suas consequências e influências em nossas repetições de padrões, vislumbrando sempre projeções de mudança de curso, atentos sempre ao “efeito borboleta”. Discussões por uma educação respeitosa (não confundam com “permissiva”), iluminadas e incandescidas por Paulo Freire, e influenciadas por outras teorias e experiências educacionais revolucionárias, como as da Reggio Emilia, Escola da Ponte, Projeto Âncora, Waldorf, Maria Montessori, sem ignorar pinceladas de Lev Vigostky, Wallon, Piaget e outros teóricos, em conjunto com conhecimento da psicologia comportamental e das descobertas e avanços da neurociência na formação e desenvolvimento do cérebro.
Inicialmente, mais do que “o que fazer”, conversaremos sobre “o que não fazer”, exemplificando com práticas antipedagógicas frequentes em nossa sociedade, e justificando com as implicações negativas no aprendizado e desenvolvimento pleno individualizado de cada ser a partir de sua inauguração neste planeta.
Me conte, o que na sua infância foi desnecessário ou violento por parte de seus cuidadores, que dificultou seu desenvolvimento, seu relacionamento com seus entes queridos, ou interação social? Para você, é natural, uma criança achar que chinelo e cinto servem para bater, e não para proteger os pés e segurar as calças? Natural ou sociocultural? Sua mente e seu emocional estão preparados para esta conversa?
Me responde e me segue, e vamos organizar estas ideias juntos. Axé e Até.
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Boas reflexões.
Boa reflexão!
Assunto incômodo mas necessário.