
Para ler ao som de “The power of love”, de Frankie Goes to Hollywood
Obs.: há spoilers
Quando vi o trailer “Todos Nós Desconhecidos” (All of Us Strangers) eu decidi que não assistiria pois seria mais um filme gay de dois homens padrões. Mas um amigo, em que confio muito nas opiniões, indicou-me. No mesmo dia assisti e veio o susto, a surpresa, o incômodo. Com um roteiro adaptado do livro Strangers, de Taichi Yamada, por Andrew Haigh e dirigido pelo mesmo, o filme é extremamente delicado e abre uma série de discussões possíveis. E sobre algumas delas discorrerei aqui.
A história é aparentemente simples, um roteirista, Adam, interpretado por Andrew Scott, inicia um texto sobre a relação com seus pais. Ele mora em um prédio desses moderninhos, pequenos e voltados para solteiros. Lá parece só habitar ele e Harry (Paul Mescal), que um dia aparece meio bêbado em sua porta convidando-o para beber. O prédio fica em Londres, mas em um local aparentemente tranquilo e sem a loucura característica dessa cidade. E apesar de Adam não aceitar o convite de Harry neste primeiro momento, depois eles iniciam um caso com uma série de desdobramentos.
Adam é um cara que está em construção da sua homossexualidade e tem seus 40 anos. O contato com a história da sua infância e a relação com seus pais mexe com uma série de emoções. Harry é uma espécie de gatilho, aquele que “auxilia” Adam a atravessar a sua sexualidade de forma mais livre e sem pudores. Um auxílio sem intenções, muito mais um parceiro que vai, com muita sensibilidade, apresentando possibilidades: beijos, sexo, ser cuidado, ir a uma balada, experimentar uma droga ilícita, dormir juntos.
Mas paralelamente a tudo isso, Adam revive sua relação com seus pais interpretados por Claire Foy e Jamie Bell. Durante um momento é confuso, pois não sabemos se eles estão vivos ou é a imaginação de Adam. Ele cria o hábito de ir até a casa dos pais constantemente, em uma cidade mais longe de onde ele morava. Ele entra na casa, tudo ambientando nos anos 60, conversa com os pais sobre seus gostos, a impressão deles relacionada a sua orientação sexual, o bullying sofrido na escola e a dor de perdê-los aos 12 anos depois de um acidente de automóvel.
O personagem se depara com dois lutos: a morte dos pais e a sexualidade não experimentada. Lutos não vivenciados ocasionam diversos conflitos e até mesmo doenças. Adam aparenta ser um rapaz solitário, sem energia, meio que moribundo e sempre com uma aparência cansada e malcuidada. E é impressionante como a entrada de Harry nas cenas traz leveza, sensualidade, brilho e sorrisos nos rostos. Lidar com o luto é aceitar que algo se foi e que o que se segue, é novo e um tanto esquisito. É entender que a história necessariamente passa a ser escrita de forma diferente.
O diretor falou em uma entrevista que foi custoso dirigir este filme, pois ele é também autobiográfico. E que escolheu Andrew Scott como protagonista por este ser um homem gay que viveu uma época diferente do que se vive hoje frente a sexualidade. Ou seja, descobrir-se gay nos anos 60, ainda adolescente, e passar pelos anos 80 com a AIDS e chegar aos 90 ainda cheio de perguntas foi bem distinto do que se experencia atualmente.
Essa angústia não é mais tão comum, pois estamos rodeados de uma cultura que vem naturalizando cada vez mais o ser gay – apesar de todo reacionarismo. Essa angústia de Adam é tão bem apresentada que as vezes parece que vai asfixiar quem assiste. E é interessante esse viés do filme, pois a moçada atual por vezes esquece de como foi doído “sair do armário”. É importante que isso seja trazido à tona, pois: são vivências diferentes, para que não se repita esta repressão e para pensar na vida dessas pessoas que entre 50 e 60 anos podem experimentar uma solidão dolorosa.
O filme segue com seu tom meio escuro, típico de grandes cidades como Londres e São Paulo. Aquele ar moderno e sufocante. E traz cenas delicadas, como a que Adam, já adulto, está na cama com um pijama de criança, entre o pai e a mãe. Ele conversa com a mãe sobre ter ficado só pós-acidente e em determinado momento, ao olhar para o lado, ao invés do pai, é Harry quem está. Algo meio psicanalítico, um complexo de Édipo. Um retrato que em sua fase fálica ele teve a sua sexualidade interrompida pela morte dos pais e pela impossibilidade de ter sido aceito enquanto adolescente gay.
Uma situação como essa castra. Retira a energia sexual, desviando-a para outros tantos caminhos como a depressão, a timidez, a vergonha de si, a falta de coragem e tantas e tantas outras vivências experimentadas pelo homem gay. Harry é este homem, que não sabemos ser uma fantasia de Adam, mas que permite ao personagem principal se soltar, expandir-se, mexer em seus lutos e enfrentá-los.
Mas talvez seja no final do filme que esteja uma das suas maiores belezas ou tristezas. Ao som de The power of love, de Frankie Goes to Hollywood, Adam abraça, em conchinha, Harry na cama. Não sabemos se Harry está vivo ou não devido a uma cena anterior que não vou comentar aqui. Mas agora é Adam quem cuida, é ele quem acolhe, é ele quem diz que vai proteger. É como uma reconciliação. A música segue, a câmera abre, eles viram um ponto de luz e aparecem diversas estelas em um céu negro.
Aqui há alguns pontos interessantes. Ao mesmo tempo em que parece que Adam se suicidou e que cansou de tudo o que ele estava vivendo, por ver aquele amor/relação que o ajudou ter morrido. Pode também aparentar que Adam ressignificou todo o seu processo de luto e “acomodou” em si os seus desejos. Isso pode ser ainda mais fortalecido pelo clipe a música The power of love e da sua própria letra. No clipe, há uma estrela que conduz os Reis Magos ao nascimento do Cristo, numa alusão ao Natal.
Uma possível metáfora do poder do amor como luz que fortalece, cura, autentica, podemos dizer assim, o humano. Ser amado aquece, revigora e possibilita contatos autênticos com o nosso íntimo. Sim, é preciso também deixar-se ser amado. O homem ou a mulher gay muitas vezes não tem a oportunidade de experimentar uma adolescência como o hetero experimenta. O sexo e o amor tantas vezes são escondidos, possuídos de vergonha e culpa. E quando este mesmo homem e esta mulher chegam a fase adulta, ainda carregam sombras estranhas sobre o que é o amor e o sexo.
Daí relacionamentos violentos, dependentes, desejos de ter um “príncipe ou princesa encantada”, uma falta de controle no impulso sexual, entre outros pontos. Adam é este homem gay, que mesmo branco e europeu, carrega um pedaço de muitos gays que cresceram entre os anos 60 e 90. Que sequer entendiam o que era bullying. Que tiveram sua autoestima destruída. E hoje, vão tentando colar os “tais caquinhos do velho mundo”.
Andrew Haigh foi feliz em sua condução. Mexeu no luto e na vida de muitos gays como eu que experimentaram a palavra mais dura e conflituosa: a angústia. O triste é que muitos se matam ou se mataram porque não foram ajudados ou cansaram – e isso é digno. Mas outros ainda estão aí, tropeçando, tentando entender e seguindo a sua estrela interna com a ajuda de alguém ou “alguéns”.
Para ir mais além:
Trailer oficial do filme – https://www.youtube.com/watch?v=IcSpuXF-8M8&t=5s
Entrevista de Andrew Haigh – https://vogue.globo.com/cultura/noticia/2024/04/todos-nos-desconhecidos-diretor-andrew-haigh-comenta-sobre-o-drama-romantico-queer.ghtml
Clipe The power of love – https://www.youtube.com/watch?v=WtdRv6GT9Zg
Fonte da imagem: https://disneyplusbrasil.com.br/todos-nos-desconhecidos-quando-e-onde-assistir-no-streaming/
Olha...fiquei impactada, confusa, buscando entendimento. E que interpretação dos atores. Daquelas interpretações que nos envolvem. Senti o sofrimento dele a cada cena, os sentimentos contraditórios, a solidão "física"e a emocional... Obrigada pela indicação e pelo texto...que continuou me fazendo pensar a respeito.
Xico, ainda não assisti, mas as suas palavras me tocaram muito: "O homem ou a mulher gay muitas vezes não tem a oportunidade de experimentar uma adolescência como o hetero experimenta. O sexo e o amor tantas vezes são escondidos, possuídos de vergonha e culpa."
A adolescência é um momento mágico em nossas vidas, é muito desumano privar um irmão (a) de vivê-lo plenamente, apenas por causa da sua orientação sexual.
Não sei explicar muito bem, mas chego a sentir vergonha alheia sabe? Como alguém da nossa espécie não entende que a sexualidade não influencia em absolutamente nada no caráter das pessoas e que é um assunto completamente pessoal?
Firmes! Acredito muito na força das lutas JUSTAS!
O amor é…
O filme é uma potência! Vale assistir, independentemente da orientação sexual. Vale assistir por falar do humano e abordar temas tão próprios de qualquer ser. O texto traz o vigor
do filme e me deixou emocionado por tamanha sensibilidade ! Obrigado