UMA NOVA DITADURA: A Rosificação
- Kelly Lidia

- 8 de nov.
- 3 min de leitura
Atualizado: 9 de nov.

O tema de uma das aulas que estava dando neste mês era Diversidade, Equidade e Inclusão nas Organizações. Quando chegamos à parte sobre gênero, o debate tomou um rumo que adoro, pois começamos a falar sobre um fenômeno aparentemente banal, mas profundamente político: a rosificação.
À primeira vista, parece inofensivo. É só uma cor, certo? Mas o que acontece quando o rosa deixa de ser uma escolha e passa a ser um código? Quando se torna um modo de ensinar, desde cedo, quem você deve ser?
“Meninas vestem rosa e meninos vestem azul” é uma frase batida, quase uma piada, mas no fundo, muita gente ainda concorda com ela. E tudo bem, afinal, é difícil discordar de algo que foi vendido como norma social por décadas.
Falo da codificação de gênero através da cor, um processo que, embora pareça natural, é inteiramente construído social e historicamente.
Até o início do século XX, o rosa era considerado uma cor masculina (por ser uma variação do vermelho, associada à força e à energia), enquanto o azul era visto como delicado, espiritual, apropriado às meninas. Essa inversão se consolida com a expansão do consumo de massa, especialmente no pós-guerra, nos anos 1950, quando o marketing começa a segmentar produtos “para meninas” e “para meninos”.
A filósofa Silvia Federici, em Calibã e a Bruxa, explica como a transição para o capitalismo redefiniu radicalmente as relações de gênero. O trabalho das mulheres foi domesticado e desvalorizado, e seus corpos, disciplinados. Por isso, discutir rosificação não é uma questão estética: é falar sobre como o capitalismo organiza a diferença de gênero e a transforma em mercado.
Nesse contexto, o rosa se torna uma estratégia de diferenciação e segmentação de consumo. O resultado? A indústria cria duas versões de tudo (a de menino e a de menina) para vender mais e, de quebra, perpetuar os papéis de gênero.
Mas há algo ainda mais profundo. Ao longo desse processo, o discurso da autonomia feminina é capturado pelo neoliberalismo. Já percebeu que em vez de questionar as estruturas de desigualdade, ele se transforma em uma mensagem individualista, centrada em autoaperfeiçoamento, meritocracia e consumo?
Um exemplo clássico são as campanhas de “empoderamento” que celebram a “beleza real” das mulheres, mas, no fim, vendem cosméticos. Ou seja, reforçam a ideia de que autoestima depende de aparência no meio daquelas 287387843 camadas de produtos do skin care.
Outro exemplo é o da chamada “feminilidade empreendedora” em um o culto à mulher multitarefa, autossuficiente, “vencedora”, que concilia maternidade, trabalho e beleza como se tudo fosse uma questão de esforço pessoal. São os discursos de “mães empreendedoras”, “mulheres de sucesso”, “elas por elas” que exaltam a autonomia financeira, mas silenciam sobre a precarização do trabalho, as desigualdades de classe e raça e a ausência de políticas públicas que sustentem essa suposta liberdade.
É disso que falo quando digo que o rosa deixou de ser apenas cor: virou tecnologia de gênero. Primeiro ele disciplina o corpo feminino, depois ele ensina desde cedo o que é “ser menina” e por fim, que tipo de comportamento/pensamento se espera delas (docilidade, beleza, cuidado, emoção).
Afinal, já parou pra pensar no que a cor rosa nas bonecas, nas mochilas e em todo o “universo feminino” ensina?
Talvez o seu ‘’mundo cor de rosa’’ diga mais sobre o mundo que nos foi imposto do que sobre o mundo que de fato escolhemos.



Impossível não traçar paralelos com nosso próprio cotidiano sem lembrar como esse discurso é sutil o suficiente pra impor restrições na vida de uma pessoa.
Excelente texto. Esse tema também me incomoda. Quando minha filha chegou, que fomos em lojas começar a comprar o enxoval as atendentes perguntavam logo "menina ou menino", quando dizíamos menina, vinha a enxurrada de roupas rosas. Quando nós compramos coisas diversas preferimos até de outras cores, pq sabemos que ela ganha muita coisa rosa.